sábado, 12 de maio de 2007

Territórios de Socialização Democrática: Uma Estratégia de Transformação Estrutural Através da Economia Solidária

Eduardo Martins Barbosa

Fortaleza, 02 de maio de 2007

O bloco democrático-popular que historicamente vem sendo construído no Brasil, já alcançou grandes conquistas expressas tanto nas inúmeras experiências socioeconômicas comunitárias de base, como nas diversas formas organizativas nacionalmente articuladas, de forma hierárquica, a exemplo do movimento sindical ou em redes, tal qual o movimento de economia solidária.

Este bloco histórico também se organizou politicamente através de um leque de partidos políticos e hoje detém uma parcela não desprezível do poder institucional, nas três esferas de governo e nos espaços legislativos nos âmbitos municipal, estadual e federal. Além disso, conta com aliados nos ministérios e defensorias públicas e de modo bem mais restrito, marca presença também no poder judiciário. Esta última situação desfavorável é também observada na grande mídia, mas a existência de uma múltipla, fervilhante e relativamente dispersa e descoordenada mídia “alternativa”, em especial a mídia eletrônica é uma força considerável. No plano cultural, uma configuração com significativas semelhanças pode ser observada. Este processo reflete a diversidade, multiplicidade e organicidade dos sujeitos históricos na formação social brasileira contemporânea.

Entretanto, com todos os avanços do bloco histórico democrático-popular, é preciso reconhecer a força do bloco histórico hegemônico, em especial o capital financeiro. Ela se expressa na manutenção dos aspectos mais críticos da política macroeconômica do Governo Lula (juros altos, câmbio desvalorizado e superávit primário), contra ataques aos direitos trabalhistas e previdenciários e prevalência do agronegócio frente à reforma agrária e à agricultura familiar.

Revisitando Chico Mendes podemos dizer que estamos vivendo um “empate”. Tomamos a frente, ocupamos parcela do governo e do poder do estado, mas não temos força para implantar o projeto democrático-popular.

Euclides André Mance, no seu livro “Fome Zero e Economia Solidária: o Desenvolvimento Sustentável e a Transformação Estrutural do Brasil”, tráz uma visão processual desta disputa de projetos. “Nas últimas décadas, três concepções de desenvolvimento, entre outras, estiveram colocadas em debate no país. Destas três, a que teve maior destaque foi a neoliberal, cuja ênfase está na competição entre agentes privados no mercado, abrindo-se espaço a mais ampla participação do capital externo, operando-se desse modo à pretendida internacionalização do mercado interno, buscando-se com isso que o país viesse a sair da situação de dependência, para chegar à situação de interdependência. Mas de fato, esse caminho nos levou para a hiperdependência. A segunda delas é a desenvolvimentista, cuja ênfase está no capital nacional, que criaria um amplo mercado de massas, graças à distribuição de renda. Aqui apresenta-se a aliança entre o capital nacional e os trabalhadores em defesa do emprego, do aumento das exportações, da redução das taxas de juros como forma de ativar a economia e gerar postos de trabalho com progressiva distribuição de renda. Salienta-se o papel do Estado na defesa dos interesses do capital nacional. Desconsidera-se os impactos sociais e ambientais negativos. O seu caráter concentrador de renda é dissimulado pela ilusão do incremento do PIB per capita, o que por sua vez traz igualmente a ilusão de uma elevação do IDH. A terceira é o desenvolvimento sustentável, que considera todas as dimensões do assentamento humano em um determinado ambiente, para que o arranjo social e econômico que nele se constitua seja justo, equilibrado e duradouro”.

A escolha sobre qual a concepção de desenvolvimento para esta fase pós-neoliberal e qual o melhor caminho para a sua construção estiveram em jogo nas duas últimas eleições nacionais e na conformação dos dois Governos Lula. O resultado que podemos ver é que, de modo geral, as três concepções presentes na sociedade estão internalizadas no governo e no próprio aparelho de estado e também se expressam na divisão do bloco histórico democrático-popular, em construção desde o período de luta pela redemocratização do país. Isto pode ser observado no âmbito das forças partidárias de esquerda, com a recente criação do PSOL, bem como no fracionamento crescente do movimento sindical: CUT (PT e Corrente Sindical Classista/PCdoB) – Força Sindical – CONLUTAS (PSTU) e INTERSINDICAL (PSOL).

Entretanto, a percepção de que cada organização/movimento não tem força suficiente para barrar os contra ataques do bloco hegemônico tem levado ao um esforço de ação conjunta, refletida na importância crescente da Coordenação dos Movimentos Sociais (CMS), articulada pela CUT – MST – UNE – CONAM e Marcha Mundial das Mulheres. Recentemente observa-se um esforço inicial de recomposição do bloco histórico democrático-popular com base em alguns pontos gerais de unificação: defesa dos direitos trabalhistas e previdenciários, contra a política macro-econômica do Governo Lula, crítica ao agronegócio e defesa da reforma agrária e luta por moradia, ensino e saúde pública de qualidade. Este processo se expressa na tentativa de rearticulação dos movimentos sociais nacionais (Via Campesina – CMS – Intersindical – Conlutas – Assembléia Popular e Pastorais Sociais) para o 1º de Maio e a Jornada Nacional de Luta, prevista para o dia 23 de maio.

Vale lembrar que este contexto local está inserido no processo do Fórum Social Mundial, com seu tema central “outro mundo é possível”, que tende a avançar da agenda pós-neoliberal para uma re-polarização mais forte entre esquerda e direita. Isso se dá na medida em que o “altermundismo”, como idéia força vai se concretizando a partir do local e tendo incidência no plano nacional. Ressalte-se que a discussão sobre o “nacional” e mais especificamente sobre o “Projeto de Nação” é uma clara derrota do ideário neoliberal e um desafio para as forças políticas representativas do bloco histórico democrático-popular.

Também no âmbito mais geral, alguns temas como a crise ambiental, a exclusão social e a explosão da violência, especialmente a violência urbana, se destacam como “sintomas da crise civilizatória atual”. O primeiro se expressa nas evidências do aquecimento global e na sua transformação em “assunto globalizado”. Os dois outros temas, antes característicos dos países subdesenvolvidos, hoje desnudam a realidade social dos países centrais. A repercussão desses temas no imaginário das pessoas nos permite revisitar à formulação de Castoriadis – socialismo ou barbárie.

Novas oportunidades e novos caminhos estão abertos, conforme assinala Boaventura de Souza Santos, no artigo “Aprender com o Sul”, publicado na Agência Carta Maior em 11/04/2007: “A América Latina está hoje na vanguarda da reinvenção do Estado, da democracia e da esquerda, e a Bolívia é talvez o país mais avançado neste domínio. Não deixa de ser sintomático que sejam os excluídos dos excluídos, os povos indígenas, a protagonizar este processo.”

A emergência dos povos indígenas como sujeitos históricos traz a tona o conceito de território, tão caro aos geógrafos. Neste sentido, foram selecionados pequenos trechos, apresentados na forma de tópicos, do texto de Bernardo Mançano Fernandes, intitulado “Os campos da pesquisa em Educação do Campo: espaço e território como categorias essenciais”

Território e relações sociais: “As relações sociais e os territórios devem ser analisados em suas completividades. Neste sentido, os territórios são espaços geográficos e políticos, onde os sujeitos sociais executam seus projetos de vida para o desenvolvimento. Os sujeitos sociais organizam-se por meio das relações de classe para desenvolver seus territórios. No campo, os territórios do campesinato e do agronegócio são organizados de forma distinta, a partir de diferentes classes e relações sociais.”

A organização do território: “Um exemplo importante é que enquanto o agronegócio organiza o seu território para a produção de mercadorias, dando ênfase a esta dimensão territorial, o campesinato organiza o seu território para realização de sua existência, necessitando desenvolver todas as dimensões territoriais. Esta diferença se expressa na paisagem e pode ser observada nas diferentes formas de organização de seus territórios.”

Espaços e territórios: “Estas definições de espaço e território são novas e não são encontradas nos manuais de geografia tradicional. A construção conceitual vem sendo realizada com base na realidade formada pela conflitualidade entre os diferentes territórios das classes sociais que ocupam o campo como espaço de vida e de produção de mercadorias. É importante esclarecer que território é espaço geográfico, mas nem todo espaço geográfico é território. Há outros tipos de espaço geográfico, como lugar e região. Também é importante lembrar que território não é apenas espaço geográfico, também pode ser espaço político. Os espaços políticos diferem dos espaços geográficos em forma e conteúdo. Os espaços políticos, necessariamente, não possuem área, mas somente dimensões. Podem ser formados por pensamentos, idéias ou ideologias. É essencial enfatizar que o território imaterial é também um espaço político, abstrato. Sua configuração como território refere-se às dimensões de poder e controle social que lhes são inerentes.”

Tipos de territórios: “As relações sociais, por sua diversidade, criam vários tipos de territórios, que são contínuos em áreas extensas e ou são descontínuos em pontos e redes, formados por diferentes escalas e dimensões. Os territórios são países, estados, regiões, municípios, departamentos, bairros, vilas, propriedades, moradias, salas, corpo, mente, pensamento, conhecimento. Os territórios são, portanto, concretos e imateriais.”

A apropriação desse conceito pelo movimento popular pode ser identificado nesta entrevista do dirigente do MST, José Batista Oliveira, à Agência Carta Maior, em 26/04/2007, quando este afirma: “Nesse sentido, um novo elemento a se estudar é a questão do território, do próprio poder popular... não na direção de ‘vamos largar toda a idéia de partido, não vamos mais disputar o Estado, vamos só organizar o povo no poder popular’. Mas há uma idéia de uma nova estrutura de organização coletiva. Se você pensa a questão do território: lá esta o desempregado, está o assalariado rural, morando na periferia. Não é só o sindicato como forma de organização, tem outras formas. Por isso a Assembléia Popular vem nesse sentido, de trabalhar a organização popular através da geografia, dos territórios. A idéia do poder popular tem esse objetivo, não o de despolitizar ou inventar uma outra roda. Por isso acho que não há uma competição entre o movimento social e o partido. Agora, há uma metodologia. Por isso apostamos na representação de redes e não de partidos nas nossas articulações, é uma maneira de se discutir tanto a fórmula organizativa quanto a capacidade de mobilização, e de envolver a militância num processo mais amplo possível de luta e participação política”

Estes são alguns dos elementos do rico e contraditório contexto em que se faz a discussão sobre as políticas públicas de economia solidária. A idéia central é materializar o que o Prof. Paul Singer vem chamando de “espírito socialista da economia solidária”. É neste sentido que se apresenta, como contribuição ao debate, a estratégia dos “Territórios de Socialização Democrática através da Economia Solidária”

Tomamos como pressuposto que o Estado, através dos Governos anteriores, já fez diversas intervenções no espaço cearense, criando “Territórios de Reprodução Ampliada do Capital”, a exemplo do “Complexo Industrial e Portuário do Pecém” cuja viabilização é compromisso do atual governo. Assim, é legítimo que o Bloco Histórico Democrático Popular, que ajudou a eleger o novo Governo e tem representantes na estrutura administrativa do Estado, apresente a estratégia de “Territórios de Socialização Democrática através da Economia Solidária”, como mecanismo de superação das concepções neoliberal e desenvolvimentista, para a efetivação da concepção de desenvolvimento sustentável e solidário, podendo esta ser caracterizada como um dos embriões do processo de transição ao socialismo, tema que está novamente na cena pública devido à nova realidade política latino-americana.

Em síntese a estratégia “Territórios de Socialização Democrática através da Economia Solidária” consiste inicialmente na auto-identificação, pelos movimentos sociais, de espaços (bairro, distrito, município, microregião) de alta densidade organizativa popular focada na economia solidária. Em seguida será estabelecido um processo de mobilização, articulação e debate público, em assembléias populares, em torno do tema economia solidária e transição socialista. O processo se encerra com a realização de uma consulta pública, fundamentada em um “Plano Conceitual e nas Diretrizes para a Transição Socialista no Território” para que o conjunto da população decida democraticamente se quer que aquele espaço identificado pelos movimentos sociais passe a ser considerado um “Território de Socialização”. Isto significa que a população democraticamente poderá decidir experimentar um processo de transição da forma capitalista de organização sócio-economia para uma outra forma, de inspiração socialista, baseada na socioeconomia solidária. Tomada essa decisão, cabe ao Estado reconhecer este novo estatuto, com base em uma legislação específica a ser criada para conferir legalidade a esta nova realidade social. Reconhecido o “Território de Socialização”, as institucionalidades locais negociarão com o governo um “Plano de Ação Imediata” para dar dinamismo ao processo, enquanto o território elabora um “Plano Territorial Estratégico e Democrático”, desdobrando-se em programas e projetos operacionais, que também serão negociados com o Governo Estadual e outras esferas de governo.

No sentido de sintonizar e dialogar com essa dinâmica, o Governo Estadual desenvolverá um conjunto de políticas públicas, capazes de apoiar os processos preparatórios, de discussão e deliberação, de planejamento, nas suas diversas formas, e principalmente de financiar a implementação das ações efetivas de socialização do território.

Finalizando, pode-se dizer que esta estratégia procura enfrentar, de forma ainda muito incipiente, a problemática da transição socialista, tratada por Vladimir Pomar em quatro artigos publicados no sítio do Correio da Cidadania entre 26/03 e 12 /04. No artigo “Socialismo e forças produtivas” o tema é assim abordado: “A questão das forças produtivas, isto é, da capacidade de gerar as riquezas sociais, continua como um dos pontos mais polêmicos da discussão sobre o socialismo. Apesar de estar na raiz dos problemas que levaram o socialismo do leste europeu à bancarrota, forçar os socialismos chinês e vietnamita a diferentes ziguezagues, e até hoje manter os socialismos cubano e coreano como incógnitas de futuro incerto, é uma questão praticamente ausente do debate socialista brasileiro.”

Em outro trecho deste mesmo artigo o autor comenta: “Haver surgido como solução para países desse tipo (baixo desenvolvimento das forças produtivas) representou um nó teórico e prático para as primeiras revoluções socialistas. Como implantar a igualdade enquanto persistir uma produção insuficiente de riquezas? Como praticar a liberdade, enquanto os trabalhadores forem obrigados a vender sua força de trabalho como condição de sobrevivência? Como realizar a solidariedade, enquanto grandes maiorias mal têm como viver?”

Estas são questões bastantes presentes na realidade cearense e a estratégia dos “Territórios de Socialização Democrática”, é uma proposta que procura dialogar com os problemas a partir da ótica, da história e das experiências do Bloco Democrático-Popular e é uma contribuição para o debate das políticas públicas de economia solidária do Estado do Ceará.

Eduardo Martins Barbosa é sócio colaborador do Instituto de Estudos e Assessoria para o Desenvolvimento Humano - SETAH e responsável pela unidade temática Economia Solidária na instituição.

Criação do Blog do Eduardo Barbosa

Prezados amigos e amigas

A vontade e a possibilidade de compartilhar as minhas reflexões com muitas outras pessoas foi o motivo principal para a criação deste blog. Ter um espaço para organizar e colocar a disposição dos interessados(as) informações, textos e dicas nas diversas temáticas que venho trabalhando nestes anos todos de atuação profissional era um antigo desejo viabilizado com esse ciberespaço. Trilhar novas veredas para a ação política comprometida com as lutas sociais, as transformações estruturais da sociedade brasileira e a construção de um outro mundo possível foi essencial para a criação desse território virtual. Tudo isto é parte da estratégia de implementação dos territórios de socialização democrática. Sejam bem vindos. Sejam bem vindas.

Eduardo Barbosa