sábado, 24 de outubro de 2020

Estudo-Propositivo-Para-o-Desenvolvimento-Rural-Sustentavel-Solidario-Na-Area-Reformada-Do-Pirangi-Referenciado-No-Conceito-de-Distrito de Desenvolvimento

ESTRATÉGIAS DE DESENVOLVIMENTO LOCAL COM ENFOQUE AGROECOLÓGICO - ENA 2002

Eduardo Martins Barbosa

Como passar das experiências agroecológicas localizadas para uma agricultura ecológica amplamente estabelecida em uma determinada região? Essa questão tem rondado a cabeça de muita gente que há tempos vem labutando na formulação de estratégias de trabalho que possibilitem resultados mais amplos e consistentes em termos da construção de um novo modelo de desenvolvimento agrícola para o Brasil.

Como promover o desenvolvimento local nos numerosos, pequenos e pobres municípios em que a agricultura e os serviços públicos são as únicas fontes de renda para a população? Essa tem sido uma pergunta desafiadora para todos aqueles que se têm envolvido com os diversos programas de desenvolvimento local em implantação em nosso país.

O tema "estratégias de desenvolvimento local com enfoque agroecológico" reflete, assim, a preocupação da coordenação geral do ENA sobre essas questões e, de certo modo, aponta o desenvolvimento local como uma estratégia para os interessados na expansão da agroecologia; simultaneamente, essa escolha indica a agroecologia como um foco temático para os que vêm trabalhando com as concepções de desenvolvimento local de forma mais genérica. A expressão "desenvolvimento local agroecológico" pode ser a síntese desses dois necessários e promissores movimentos.

Para tratarmos do tema torna-se necessária, entretanto, uma breve reflexão sobre as origens e concepções do desenvolvimento local, pois esse é, sem dúvida, um tema central da agenda de debates da atualidade, internacionalmente.

Um dos primeiros grupos a trabalhar com a idéia de desenvolvimento local foi o movimento ambientalista, que procurou pôr em prática sua bandeira política "Pensar globalmente, agir localmente". Essa idéia foi a base da construção de muitas experiências de comunidades alternativas, na busca de um novo tipo de organização e desenvolvimento da sociedade. Outro grupo que adotou a estratégia de ação local para fazer o questionamento do atual padrão de desenvolvimento é composto pelas organizações da sociedade civil que trabalham com a ideia de ampliação da cidadania como foco da luta contra a exclusão social.

Nesse período, o processo de globalização neoliberal produziu um contexto muito favorável à (re)abertura da discussão sobre a ação local em função de duas estratégias centrais adotadas para sua implementação. Por um lado, a idéia do estado mínimo enfraqueceu a noção de estado nacional, o que provocou o ressurgimento e a valorização dos regionalismos, fortalecendo o nível local como espaço para se pensar o desenvolvimento. Por outro lado, a proposta de reestruturação produtiva por meio da flexibilização dos processos de trabalho quebrou a noção cristalizada da vantagem da produção em grande escala, em qualquer situação. Isso viabilizou iniciativas de pequena escala, de âmbito local.

Esses movimentos têm gerado muitas reflexões, no sentido de avançar na análise dos diversos aspectos que compõem o desenvolvimento local. Temas como poder local, políticas públicas, identidades locais, território, “empreendedorismo” endógeno, sustentabilidade, etc. são conceitos centrais para a análise e o planejamento do desenvolvimento local em uma perspectiva mais sistêmica. Vale ressaltar que esse debate específico faz-se no bojo do próprio debate mais geral sobre o desenvolvimento, que ressurge com força neste momento de início do declínio do ideário neoliberal, cuja presença sufocante vigorou até pouco tempo.

Essa rápida expansão da proposta de desenvolvimento local e o debate em torno de seu significado guardam semelhança com o ocorrido ao conceito de desenvolvimento sustentável e, como este último, também são concebidos e praticados de acordo com a visão de mundo e os interesses concretos de cada um dos atores atuantes na sociedade. Nesse contexto cabe a pergunta: o desenvolvimento local é uma estratégia de transformação da sociedade ou simplesmente mais uma fórmula de ajuste da reprodução do capital nestes tempos de globalização? Pode-se dizer que a resposta a essa questão não está no próprio conceito de desenvolvimento local, mas, sim, na perspectiva política de quem utiliza essa metodologia.

Isso posto, podemos voltar aos dois dilemas centrais dos agroecologistas: "como passar das experiências agroecológicas localizadas para uma agricultura ecológica amplamente estabelecida em um determinada região, na perspectiva da construção de um novo modelo de desenvolvimento agrícola para o Brasil?"; o desenvolvimento local é uma boa estratégia para efetivar esse processo?

As respostas a essas questões devem ser buscadas na reflexão sobre a prática concreta. Nesse sentido, a base de análise disponível pode ser considerada muito precária, pois ainda são poucas as experiências de desenvolvimento local cujo foco é a agroecologia, e, além disso, a sistematização dessas experiências é ainda extremamente incipiente. Levando em conta essas limitações, podem-se fazer algumas considerações preliminares, para o sentido de colaborar no debate sobre o que se está denominando "transição agroecológica" ou "modernização ecológica da agricultura brasileira".

De modo geral, diversas instituições e organizações trabalham o desenvolvimento local como uma "metodologia para promover o desenvolvimento sustentável por meio da participação multisetorial de diversos agentes, governamentais, sociais e empresariais, no planejamento, na execução, no monitoramento e na avaliação de ações integradas e convergentes em localidades determinadas".

No campo governamental os mais conhecidos são os programas Comunidade Ativa e Comunidade Que Faz, desenvolvidos pelo Conselho da Comunidade Solidária, Agência de Educação para o Desenvolvimento e Sebrae, e o Programa BNDES – Desenvolvimento Local – Cooperação Técnica, do PNUD. Existem ainda outras iniciativas de estados e municípios, muitas delas relacionadas à elaboração da Agenda 21. No campo da sociedade civil muitas ONGs adotam o desenvolvimento local como estratégia geral de trabalho, mas a Contag, por meio do Programa de Desenvolvimento Local Sustentável, foi talvez a organização que mais investiu nessa estratégia, visando a um objetivo maior, que é a construção do Projeto Alternativo de Desenvolvimento Rural Sustentável.

Tomando esta última experiência como referência, é possível fazer algumas considerações preliminares. A iniciativa da sociedade civil, em especial das organizações populares, de implementar a estratégia de desenvolvimento local encontra muitos obstáculos devido ao posicionamento fechado da maioria das administrações municipais. Nesse sentido, cabe uma reflexão sobre a pertinência e a eficácia da aplicação dessa estratégia em sua plenitude. Nos municípios e regiões em que a conjuntura política local é favorável, essa iniciativa das organizações da sociedade civil torna-se interessante. Nos espaços em que essa conjuntura é desfavorável, parece ser mais efetivo seguir as orientações básicas da metodologia, envolvendo os atores mais receptivos, no sentido de elaboração de uma agenda de desenvolvimento do próprio setor popular e seus aliados. Nos municípios e regiões de base agrícola, isso significa centrar esforços na elaboração de uma agenda de desenvolvimento rural focado na agricultura familiar, tendo como referência a agroecologia. A implementação, mesmo que lenta e gradativa dessa agenda, é o principal elemento de acúmulo de experiência, capaz de ser posteriormente traduzida em propostas de políticas públicas para negociação com o poder local.

De modo geral, três situações podem ser consideradas. Nos territórios em que, embora não se praticando o desenvolvimento local, já exista um trabalho inicial com agroecologia realizado por ONGs e organizações da agricultura familiar, cabe fazer uma leitura das estratégias atuais à luz das concepções do desenvolvimento local, no sentido de gradativamente se passar de uma ação local comunitária para uma ação local mais abrangente, avançando também do trabalho de transição agroecológica no nível dos sistemas de produção para a transição no âmbito de toda a unidade de produção familiar e da própria comunidade. Essa transição caracteriza-se pela consolidação da agrobiodiversidade local, que deve ser combinada com a abordagem por produto, constituindo-se em novo campo de trabalho, da porteira para fora, que é a estruturação das cadeias produtivas, das redes de socioeconomia solidária e/ou dos complexos de cooperação solidária. Esse movimento só será possível com a estruturação de um sistema de organização da agricultura familiar, envolvendo as atuais e as novas formas organizativas e um sistema institucional de apoio ao desenvolvimento local, que inclua capacitação, finanças e acompanhamento técnico. Esses dois sistemas interconectados são essenciais à implementação da agenda de desenvolvimento local.

Nos territórios em que processos de desenvolvimento local tenham sido iniciados e a agroecologia não tenha sido adotada como referencial de mudança, o desafio consiste em trabalhar a temática agroecológica por dentro dos processos de capacitação, de modo a se obter ampla adesão a essa visão, ainda que inicialmente teórica. Um estudo propositivo da agricultura familiar do território, fundamentado na agroecologia, pode ser excelente instrumento de readequação da agenda local na perspectiva do desenvolvimento local agroecológico.

Onde ainda não existir trabalho preliminar com desenvolvimento local nem com agroecologia, torna-se necessário dar início à geração do conhecimento agroecológico para o território, como parte integrante do processo de implantação da própria metodologia do desenvolvimento local. Um elemento básico nesses casos consiste na estruturação de unidades agroecológicas de referência, a partir da seleção de agricultores interessados em iniciar a transição ecológica o mais breve possível. Visitas de intercâmbio a outras áreas com experiências mais avançadas, o estudo propositivo da agricultura familiar e a estruturação de um sistema local de inovações são imprescindíveis nessas situações.

A importância das estratégias de desenvolvimento local com enfoque agroecológico é inegável, o que não pode, entretanto, ser dissociado de uma estratégia de desenvolvimento para o país. Alguns apontam que essa estratégia é a "transformação do social na essência do desenvolvimento econômico". Se ela contempla ou não a perspectiva do desenvolvimento local agroecológico é outro debate, que necessita ser empreendido.

CRÍTICA AO MODELO ATUAL DE DESENVOLVIMENTO AGRÍCOLA E À TRANSIÇÃO AGROECOLÓGICA NO SEMI-ÁRIDO - TEXTO ENCONTRO NACIONAL DE AGROECOLOGIA - ENA 2002

 CRÍTICA AO MODELO ATUAL DE DESENVOLVIMENTO AGRÍCOLA E À

TRANSIÇÃO AGROECOLÓGICA NO SEMI-ÁRIDO

Texto elaborado para o Encontro Nacional de Agroecologia - ENA 2002. 

Eduardo Martins Barbosa

O semi-árido brasileiro é marcado pela singularidade de ser a única região semi-árida tropical do planeta, pela diversidade ecológica decorrente de seus diversos ambientes naturais, pela complexidade social originária do processo de colonização e pelo desafio do desenvolvimento, devido à persistente situação de miséria e pobreza da maioria da população, especialmente aquela que vive nos espaços rurais.

É uma das maiores regiões semi-áridas do planeta em extensão geográfica e em população. São 858.000km2, mas o polígono das secas é estimado em 1.083.790km2. Segundo o Ministério do Desenvolvimento Agrário – MDA, em 2001, o semi-árido abrigava pouco mais de 21 milhões de pessoas em 1.031 municípios situados no Norte de Minas Gerais, nos sertões da Bahia, Paraíba, de Sergipe, Alagoas, Pernambuco, do Rio Grande do Norte, Ceará e Piauí. Outras fontes incluem o Norte do Espírito Santo e uma parte do Sudeste do Maranhão na região semi-árida. As áreas dos Tabuleiros Costeiros do Ceará, Rio Grande do Norte e parte da Paraíba, embora não sejam consideradas pertencentes aos domínios do semi-árido, sofrem os efeitos do regime de chuvas da região e se enquadram no polígono das secas.

Os clássicos estudos de Guimarães Duque registram essa diversidade, com a identificação e caracterização das seguintes regiões naturais: Seridó, Sertão, Caatinga, Cariris Velhos, Curimataú, Carrasco, Agreste e Serras. A Embrapa, em seu Zoneamento Agroecológico do Nordeste, publicado em 1993, caracteriza o total de 172 unidades geoambientais em 20 unidades de paisagem, bem como oito tipos e 16 subtipos de sistemas de produção. Desse conjunto, uma boa parte está presente na região semi-árida. Portanto, longe de se caracterizar como um espaço homogêneo, o semi-árido pode ser apresentado como um “grande mosaico”.

Em termos climáticos, destacam-se as temperaturas médias elevadas e precipitações médias anuais inferiores a 800mm, extremamente concentradas, gerando os períodos de chuvas e estiagens. Cerca de 50% dos terrenos são de origem cristalina, e os outros 50% são terrenos sedimentares, sendo os primeiros de baixa capacidade, e os segundos de alta capacidade de acumulação de águas subterrâneas. A vegetação predominante é a caatinga, mas são observadas outras formações florestais nos microclimas existentes na região.

A ocupação do semi-árido nordestino pelos colonizadores vinculou-se historicamente à atividade pecuária, base econômica da região por alguns séculos. O sistema de grandes fazendas, originárias das sesmarias, é a forma típica de ocupação do território. Formada pelo “coronel” e seus familiares mais próximos, e contando com as famílias trabalhadoras vivendo agregadas ao núcleo familiar proprietário das terras, a fazenda era uma unidade econômica e social marcada por complexas relações de dominação e compadrio. A criação de gado e a indústria da charqueada constituíram o apogeu desse sistema. Além disso, a criação tanto de gado como de caprinos e ovinos estava voltada para a alimentação da população local e para o aproveitamento do couro nas necessidades da fazenda. As famílias trabalhadoras desenvolviam uma pequena agricultura diversificada composta de cultivos alimentares e de uso doméstico e a criação de porcos e aves, também voltada para o consumo da população local. Essas atividades eram praticadas no interior das fazendas de gado ou nas posses situadas nas terras devolutas. A hegemonia da pecuária sobre a agricultura expressa-se na lei “cerca quem planta”, geradora do sistema de roçados cercados para o cultivo agrícola e da criação solta, ferrada a fogo, com a marca identificadora do proprietário.

Centrada inicialmente na pecuária, a expansão da agricultura no semi-árido deveu-se ao cultivo em larga escala do algodão-mocó, que se integrou à criação formando o binômio gado/algodão. Os sistemas de produção incluíam ainda culturas alimentares e outras culturas de expressão regional como a mamona, o sisal e o extrativismo da carnaúba, da oiticica e do caju. A florescente agroindústria algodoeira e dos demais produtos cultivados ou extrativistas, mesmo passando por momentos críticos, foi a base econômica do semi-árido desde a década de 1930, até meados da década de 1980, quando o sistema praticamente entrou em colapso, devido a um conjunto de problemas sociais, ambientais, tecnológicos e comerciais, que não foram solucionados pelo setor produtivo e pelas instituições públicas atuantes no semi-árido.

A dinâmica de modernização tecnológica da agricultura nacional empreendida pelos governos militares foi bastante desigual nas grandes regiões brasileiras. No semi-árido expressou-se de maneira localizada, por meio dos projetos de irrigação do Departamento Nacional de Obras Contra as Secas – DNOCS, na forma de enclaves, não se verificando disseminação generalizada do pacote tecnológico químico-mecânico nem a constituição dos complexos agroindustriais, na proporção verificada em outras regiões. Isso, entretanto, não significa a inexistência de profundas transformações no espaço rural do semi-árido. Essas se deram muito mais pelas transformações nas relações sociais de produção da região, em especial na relação de parceria entre os grandes proprietários fundiários e as famílias de agricultores, que moravam e trabalhavam nas grandes fazendas. A quebra dessa relação de parceria e, principalmente, da condição de moradia foi uma medida preventiva do segmento patronal, contra a reivindicação de direitos trabalhistas e a luta pela reforma agrária, fundamentadas no “bem de raiz”, proporcionado pelo cultivo do algodão-mocó pelos parceiros-moradores. Essas medidas geraram uma situação de conflito social generalizado.

O Estado militarizado, aliado às oligarquias rurais locais, procurou controlar essa situação e modernizar a economia do semi-árido, combinando diversas medidas, destacando-se a repressão à crescente organização dos trabalhadores rurais, a política assistencialista, por intermédio do Fundo de Assistência ao Trabalhador Rural – Funrural, e o generoso financiamento da “pecuarização” e/ou “reflorestamento”, mediante incentivos fiscais, crédito subsidiado e trabalho das frentes produtivas nos períodos de seca. Um dos resultados dessa política foi o “desenraizamento” das famílias rurais, gerando intenso fluxo migratório para outras regiões do país.

Além dessas dinâmicas demográficas e territoriais e do enriquecimento ilícito de muitos, esse processo resultou na montagem de significativa infra-estrutura produtiva nas grandes propriedades do sertão, representada pelos açudes, estábulos, silos e cercamento das terras. Por outro lado, a formação de pastagem nativa e exótica provocou o desmatamento e o uso de herbicida em proporções mais elevadas. Também do ponto de vista econômico essa opção configurou-se em fracasso, comprometendo ainda mais as dinâmicas econômicas locais já ressentidas da progressiva desestruturação da agroindústria algodoeira e dos produtos regionais e extrativistas.

Outro resultado observado foi a desarticulação entre as dinâmicas dos demais espaços agrários subsidiários e a hegemônica dinâmica pecuária/algodoeira do sertão. Nas serras e agrestes, constituíram-se pólos hortifrutigrangeiros orientados para o abastecimento das grandes cidades e pólos alcooleiros. Na região subcosteira foram formados pólos de produção de caju, coco e cana para a produção de álcool, além daqueles dedicados à avicultura e à pecuária leiteira, possibilitando o direcionamento da economia dessas regiões para as grandes cidades e para o mercado externo.

No bojo do processo de redemocratização da década de 1980 e da fase neoliberal da década de 1990, aprofundam-se no semi-árido a diferenciação e a desarticulação interna entre os enclaves de agricultura irrigada e os amplos territórios de predomínio da agricultura de sequeiro. Ampliando-se o foco sobre o cenário, podem-se observar a progressiva decadência produtiva e econômica dos perímetros irrigados, resultado do esgotamento do padrão tecnológico, organizativo e gerencial adotado pelo DNOCS, e o dinamismo econômico dos novos pólos de desenvolvimento da agricultura irrigada, centrados na fruticultura de exportação, mediados por poderosos grupos empresariais, com integração dos agricultores de menor porte e com forte apoio estatal. Esses pólos, entretanto, reproduzem os processos de degradação ambiental, de exploração da força de trabalho integrada e de exclusão socioeconômica de parcelas significativas da população local, observados nas áreas mais antigas.

Por outro lado, nos territórios de predomínio da agricultura de sequeiro, três dinâmicas podem ser identificadas: a dos sertões, a dos agrestes e serras e a da região subcosteira. Nesta última observa-se a crescente queda de produtividade da cajucultura e dos coqueirais, com incidência crescente de pragas e doenças. Nos agrestes e serras, a degradação dos solos e a contaminação por agrotóxicos são os problemas mais relevantes. É no sertão, entretanto, que residem os maiores desafios, pois a desestruturação socioprodutiva descrita ainda não foi superada, em decorrência dos fracos resultados em termos da revitalização da cultura do algodão e dos produtos regionais e extrativistas, bem como do insuficiente desenvolvimento e difusão de alternativas de renda. Essa difícil situação geral, entretanto, é pontuada por numerosas situações localizadas que se diferenciam pela emergência de processos de reestruturação produtiva, por meio da incorporação da agricultura irrigada de pequena escala aos sistemas existentes, bem como pela própria modernização de atividades tradicionais, em especial da ovinocaprinocultura e da bovinocultura leiteira.

Esse complexo quadro de ocupação do território do semi-árido também gerou grande diferenciação nos empreendimentos agrícolas da região. Convivem nos mesmos espaços empresas agrícolas modernizadas, empresas tradicionais pouco tecnificadas, latifúndios improdutivos, agricultores familiares modernizados e tradicionais. Estes dois últimos comportam formas variadas de acesso à terra, que definem diversas categorias sociais. No geral, a pressão da agricultura familiar sobre a terra é cada vez maior e combina-se com o empobrecimento generalizado, provocando fluxos migratórios, principalmente nos anos de ocorrência de seca.

Desde a ocupação inicial até as dinâmicas mais recentes, vêm-se acumulando impactos socioambientais negativos no semi-árido. Os mais amplos são, sem dúvida, a degradação da vegetação e dos solos, observando-se crescente processo de desertificação em diversas regiões. Segundo o Instituto Desert, esse processo vem comprometendo de forma “muito grave” uma área de 98.595km2 e de forma “grave” 81.870km2, totalizando 181.000km2. Nas áreas de agricultura irrigada, os problemas de contaminação por agrotóxicos e salinização das terras são os mais relevantes. As grandes barragens geraram impactos muitos fortes sobre o ambiente e as populações locais, que pouco se beneficiaram dos altos investimentos realizados pelo Estado. De modo geral, prevaleceu a chamada “solução hidráulica” e não se desenvolveu a cultura de convivência com o semi-árido. As linhas mestras do modelo de desenvolvimento concentrador e excludente, historicamente estabelecidas, continuam vigorando, sendo determinantes na configuração do quadro de miséria e pobreza vigente no semi-árido brasileiro.

A TRANSIÇÃO PARA A AGROECOLOGIA

Nesse contexto geral, a agroecologia tem servido de base para a construção de uma cultura de convivência no semi-árido, possibilitando o renascimento e o rejuvenescimento de vertentes de conhecimento e de proposições tecnológicas, que tinham sido ceifadas pela concepção químico-mecânica, estabelecidas em universidades, centros de pesquisa, instituições de crédito e empresas de assistência técnica e extensão rural.

As dinâmicas de promoção da agroecologia originam-se das iniciativas de estudantes e profissionais da área agronômica e ambiental que recuperam os postulados de Guimarães Duque, Vasconcelos Sobrinho e outros estudiosos e entusiastas do semi-árido e da região nordestina em geral. A agroecologia permite revisitar e atualizar essa linha de pensamento, desenvolvendo-a na perspectiva da construção de uma cultura de convivência com o semi-árido, fundamentada na interação entre os conhecimentos e as técnicas geradas pela vivência da população local com seu meio e aqueles originários dos processos de pesquisa científica da atualidade.

A partir de meados da década de 1980 essas iniciativas das ONGs no campo da tecnologia alternativa começam a articular-se com as organizações dos trabalhadores rurais e com as estruturas de base das igrejas, gerando um movimento crescente, voltado para a construção de um novo modelo de desenvolvimento agrícola para o semi-árido. Esse trabalho desenvolve-se por meio da estruturação de centros e de redes de tecnologia alternativa, construindo-se pontos de contato com as universidades e outras instituições de pesquisa e extensão rural. A estratégia seguinte orienta-se para a ação local, em municípios selecionados, tendo como base a metodologia do diagnóstico rápido e participativo dos agroecossistemas e de elaboração de planos de desenvolvimento agroecológicos para comunidades rurais, em algumas situações com abrangência municipal. Esses trabalhos envolvem um significativo conjunto de temas técnicos, tendo alguns deles passado a ser o elemento de constituição de redes temáticas, com destaque para as sementes, a apicultura e a água. Essas ações evoluíram e se disseminaram para muitas áreas do semi-árido, constituindo-se em estratégias de ação que podem ser assim classificadas:

A primeira delas pode ser caracterizada como Ação de Pesquisa, Desenvolvimento e Difusão Ampla de uma Tecnologia Específica. Iniciou-se com o desenvolvimento de uma tecnologia específica, de amplo alcance, de fácil reprodução e adaptação, que responde a uma necessidade fundamental da população. A referência dessa estratégia é o trabalho em torno da cisterna de placas, que começou com a sistematização da experiência de um pedreiro, passou pela adaptação e melhoramento do método de construção e pelo desenvolvimento da metodologia de treinamento e de financiamento pelas ONGs, sendo incluído em programas de ação de prefeituras e estados, e chegando até a formulação atual do Programa de Formação e Mobilização Social para a Convivência com o Semi-Árido – Um Milhão de Cisternas – P1MC. Essa estratégia ampliada só foi possível devido à simultânea estruturação da Articulação do Semi-Árido – ASA, que atualmente envolve 613 diferentes organizações da sociedade civil.

A segunda estratégia que pode ser identificada é a Ação de Pesquisa, Desenvolvimento e Difusão Local de uma Base Tecnológica Agroecológica. Diversas entidades situadas no semi-árido adotam essa estratégia, de forma mais ou menos elaborada. Normalmente há significativo investimento no desenvolvimento de tecnologias agroecológicas, com formação de grupos de interesse e difusão em escala local. Trabalha-se com a complexidade dos sistemas de produção local, vinculando-se às organizações dos agricultores familiares.

Trabalhando ou não com a agroecologia, a Ação de Resgate, Valorização, Fortalecimento e Inclusão de Segmentos e Grupos Sociais é outra estratégia presente nas intervenções no semi-árido, principalmente em relação a mulheres e jovens. Ações de natureza educacional, artística, cultural, de geração de trabalho e renda, de apoio jurídico, etc. caracterizam as organizações desse campo. Também não direcionada especificamente para a transição agroecológica, verifica-se estratégia focada na Ação de Fortalecimento da Cidadania e Democratização das Políticas Públicas, que tem na capacitação das lideranças populares para a gestão social do desenvolvimento local um de seus principais focos de trabalho. Quando essa estratégia aponta para a discussão da Agenda 21, abre-se um grande campo para o debate do modelo agrícola e da necessidade de uma agricultura sustentável.

Nesse mesmo sentido, apresenta-se a estratégia de Desenvolvimento Local, que tanto pode ser uma iniciativa das organizações populares, das ONGs ou de instituições públicas estatais. São exemplos desse trabalho o Programa de Desenvolvimento Local Sustentável – PDLS do movimento sindical, as ONGs participantes da Rede Desenvolvimento Local Integrado e Sustentável – Dlis, os programas públicos desenvolvidos por instituições como o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social – BNDES, Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento – PNUD, Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas – Sebrae, Banco do Nordeste, Conselho da Comunidade Solidária, etc. Aqui, a transição agroecológica, normalmente via agricultura orgânica, também começa a ganhar algum espaço, principalmente pela discussão da Agenda 21.

Além dessas estratégias mais gerais, têm-se dinâmicas específicas que estão contribuindo significativamente para o avanço da agroecologia. A constituição de associações de consumidores e produtores orgânicos, visando ao planejamento da produção e à comercialização direta tem sido um caminho bastante promissor. Associações de produtores orgânicos voltadas para a venda em feiras agroecológicas ou mesmo para redes de supermercados têm mostrado a viabilidade técnica e econômica da proposta, reforçando a transição agroecológica no semi-árido. Algumas poucas grandes empresas rurais também começam a investir na produção orgânica, a exemplo do caju, mostrando que a agricultura familiar não é a única interessada nesse assunto.

Em síntese, pode-se concluir que, de forma semelhante ao que ocorre em outras regiões do Brasil, no semi-árido também estão se constituindo diversas dinâmicas de promoção da agroecologia, com vários atores envolvidos. De modo geral, elas ainda são incipientes, restritas e pouco articuladas, sendo necessário um grande esforço de integração, expansão e consolidação, para que se possa avançar na transição agroecológica no semi-árido brasileiro.

As dinâmicas de promoção da agroecologia no semi-árido estão referenciadas no conjunto das experiências que podem ser analisadas a partir de grandes temas e questões, identificando-se em cada um os acúmulos e os pontos de estrangulamento, de modo a se ter um painel do nível de construção da proposta agroecológica no semi-árido. Esse esforço de análise é apresentado a seguir.

O acesso à terra continua sendo ponto de estrangulamento para milhares de famílias de agricultores do semi-árido. De modo geral, duas situações bem diferenciadas podem ser observadas. Nas áreas sertanejas e subcosteiras, a presença das grandes propriedades, passíveis de desapropriação, aponta para a necessidade de ampliação do número de assentamentos federais, capaz de absorver parcela significativa dos “sem terra” dessas regiões. Por outro lado, nas unidades geoambientais dos agrestes e serras, a resolução da questão fundiária passa por outros mecanismos, tais como a reorganização e o crédito fundiários. Embora muito aquém das necessidades, a política de assentamento do governo federal e de alguns governos estaduais vem criando uma realidade diferenciada para um conjunto de famílias rurais, e, em alguns municípios e microrregiões do semi-árido, as transformações na estrutura fundiária são relevantes. Entretanto, um ponto extremamente preocupante é a recorrente dificuldade de os assentamentos situados no semi-árido viabilizarem-se produtiva e economicamente, observando-se níveis de pobreza semelhantes aos da situação rural das áreas em que estão inseridos. Vale ressaltar que um número significativo desses assentamentos dispõe de infra-estrutura básica, teve acesso aos créditos da reforma agrária para a estruturação das atividades produtivas, e alguns também foram beneficiados com programas de alfabetização e de assistência técnica, embora com as descontinuidades típicas das ações governamentais nesse campo.

No semi-árido o recurso natural crítico é a água. Seu uso indevido na agricultura irrigada, a precariedade do gerenciamento e a poluição das fontes de armazenamento são problemas crescentes ainda pouco trabalhados. A degradação dos recursos vegetais e do solo é um forte impacto ambiental negativo dos sistemas de produção “tradicionais” e “modernizados” existentes no semi-árido nordestino. Em algumas áreas essa degradação está evoluindo para a desertificação, com risco do comprometimento definitivo da sustentabilidade da agricultura. A gravidade da situação e as respostas positivas que os sistemas agroecológicos de produção vêm apresentando criam ambiente favorável para a difusão ampliada das soluções.

O desafio de conhecer a singularidade e a diversidade do trópico semi-árido requer significativo investimento em pesquisa, o que está muito longe do que se tem atualmente. A condição de região com índices de desenvolvimento muito abaixo da média nacional e o pouco investimento na produção de conhecimento sobre a realidade regional são fatores que se alimentam mutuamente, reforçando o círculo vicioso de pouca pesquisa, baixo desenvolvimento e vice-versa. Essa situação geral da pesquisa na região agrava-se quando se analisa a base científica para a transição agroecológica no semi-árido. Entretanto, nesse campo específico, os esforços das ONGs, articulados com as organizações dos agricultores familiares e com a colaboração de alguns poucos pesquisadores das instituições públicas, possibilitaram a geração de um conjunto mínimo de técnicas, capaz de responder aos problemas básicos dos sistemas de produção da maioria dos agricultores familiares do semi-árido. Nesse sentido destacam-se as técnicas de recuperação e conservação dos solos; a captação, o armazenamento e a utilização da água na propriedade, o manejo da vegetação, em especial da caatinga, mediante os sistemas agropastoris, silvopastoris ou agrossilvopastoris, a criação de bovinos, ovinos, caprinos, suínos e aves caipiras, a agroindustrialização familiar ou comunitária de diversos produtos e muitas outras tecnologias apropriadas às condições da agricultura familiar no semi-árido. O principal ponto de estrangulamento está na insuficiência e na ineficiência do sistema público estatal de assistência técnica e extensão rural, bem como em sua fragilidade e insuficiente articulação, com as instituições de pesquisa e com o setor público não estatal formado por ONGs, cooperativas de trabalho e empresas prestadoras de serviços. Este último setor, por sua vez, articula-se em redes diversas, mas não conseguiu estabelecer-se como um sistema organicamente estruturado, e seu funcionamento depende, por um lado, dos recursos da cooperação internacional e, por outro, dos programas governamentais, havendo raríssimos mecanismos de auto-sustentação em prática. Mesmo sujeito a esses condicionantes, o setor tem desempenhado um importante papel na geração do conhecimento agroecológico no semi-árido e tem sido o maior responsável por sua difusão junto aos agricultores familiares.

A dimensão econômica tem-se configurado num dos principais pontos críticos do processo de transição agroecológica no semi-árido. Submetidos à condição de miséria, pobreza ou descapitalização, cujas causas já foram expostas, os agricultores familiares e as organizações atuantes no semi-árido enfrentam o grande desafio de conciliar os investimentos necessários à recuperação dos recursos naturais e o manejo agroecológico de seus sistemas de produção, com a geração de produtos para o autoconsumo e de uma renda mínima, capaz de viabilizar o consumo dos demais itens que compõem a cesta familiar de produtos e serviços – o que vem sendo feito de forma bastante coerente e conseqüente por agricultores familiares, suas organizações representativas e pelas entidades de apoio. O ponto de partida é o trabalho em torno do tema segurança alimentar, que se dá por meio das casas de sementes, da diversificação dos roçados e quintais, das cisternas de placa, das pequenas barragens subterrâneas, dos cacimbões, dos barreiros-trincheira, das hortas, dos pomares, da apicultura e da criação de pequenos animais.

No semi-árido a prioridade econômica da maioria dos agricultores familiares é a regularidade da produção de alimentos nas condições de alta irregularidade do regime de chuvas. Isso pode ser obtido com pequenos investimentos financeiros orientados fundamentalmente para a capacitação e o acompanhamento sistemático de todos os que formam o núcleo familiar e para as pequenas obras de infra-estrutura produtiva e reprodutiva, voltadas para a melhoria da qualidade de vida da família. Essa estratégia básica, incluindo as melhores formas de financiamento, está técnica e metodologicamente muito bem elaborada, testada e implementada em diversas situações agrossocioambientais do semi-árido e pode ser considerada o maior patrimônio do conjunto das organizações envolvidas nesses trabalhos.

Essa forte perspectiva de autoconsumo presente em parcelas significativas da agricultura familiar não está dissociada de uma perspectiva mercantil, que vai desde a venda parcial da própria força de trabalho, realizada pelos segmentos mais empobrecidos, até a inserção no mercado internacional, a exemplo de alguns grupos de produtores de frutas frescas e castanha-de-caju. Considerando as diversas formas de inserção no mercado, viabilizadoras da renda monetária bruta dos agricultores familiares, pode-se observar que o conjunto diversificado de produtos trabalhados nos processos de transição agroecológica traz mais oportunidades de comercialização, e certos produtos passam a ser uma “atividade de renda” em função dos volumes de produção alcançados. Analisando um pouco mais detalhadamente esse aspecto econômico, podem-se observar dinâmicas distintas. Uma primeira diz respeito à revitalização de atividades tradicionais de mercado, como o algodão, o sisal, a castanha-de-caju, a cera de carnaúba, o artesanato e o próprio café. Outras podem ser consideradas atividades tradicionais em processo de mercantilização ampliada, como é o caso do mel, dos ovinos e caprinos e de frutas regionais, cajá, cajarana, umbu, goiaba, graviola e ata, por exemplo. Uma terceira dinâmica está mais relacionada a produtos de introdução mais recente, como as hortaliças e algumas frutas, entre elas o melão, o abacaxi, a acerola e a uva. Por fim, existem produtos em fase de introdução na região, a exemplo do nim e do carmim de cochonilha, que formam mercados especiais.

Em todas essas atividades existem agricultores e entidades de apoio trabalhando em processos de transição para a agroecologia, a maioria com bons resultados produtivos e até com certificação orgânica. Entretanto alguns produtos, a exemplo do algodão e do mel, apresentam significativos estrangulamentos comerciais, resultado de dificuldades de venda em pequena escala ou do escoamento da produção mais elevada e de preços não compensadores. Em outras situações o mercado é franco comprador dos produtos orgânicos, mas a transição agroecológica está restrita a um pequeno número de agricultores, com taxa de expansão muito lenta; é o caso da castanha-de-caju. Observam-se também casos de integração de produtores de hortaliças orgânicas a redes de supermercados. Por outro lado, agricultores produzindo “novos produtos de mercado”, como a semente de nim e carmim de cochonilha, têm aproveitado esse diferencial tecnológico para faturar renda expressiva com pouco trabalho. A venda de cestas padronizadas e a venda direta para consumidores cadastrados ou para a vizinhança, bem como as feiras de produtos da agricultura familiar e/ou de produtos agroecológicos, são estratégias comerciais em processo de expansão nas grandes e pequenas cidades do semi-árido, mostrando a importância dos mercados locais, principalmente para os produtos alimentícios e medicinais. Em muitos casos, o diferencial de renda é decorrente do máximo aproveitamento de todos os produtos de origem vegetal e animal, por meio da agroindustrialização descentralizada. Em algumas situações, estruturas mais centralizadas, combinadas ou não com estruturas descentralizadas, têm propiciado o melhor aproveitamento da produção e a comercialização mais vantajosa, especialmente quando se trata de exportação. Em síntese, podemos concluir que, do ponto de vista econômico, sob a lógica de combinação de autoconsumo e mercantilização, característica da maioria dos tipos de agricultura familiar do semi-árido, a transição agroecológica tem conseguido demonstrar sua viabilidade, principalmente no campo da segurança alimentar, registrando também avanços nos aspectos comerciais, proporcionando incrementos na renda monetária das unidades produtivas. Observam-se, entretanto, muitas deficiências e insuficiências nos aspectos de organização da produção e da comercialização. Isso sugere que os investimentos das organizações dos agricultores e das entidades de apoio nesse campo são fundamentais em termos da viabilidade econômica da transição agroecológica em escala mais ampla no semi-árido.

No início da discussão sobre a transição agroecológica no semi-árido, a disputa no campo ideológico era marcada pela tentativa de desqualificação dos agricultores e profissionais envolvidos no trabalho, mediante sua classificação como utópicos, românticos, atrasados ou malucos. A crescente crise dos padrões tradicional e convencional, e os resultados positivos alcançados pela agroecologia no semi-árido, no contexto da ampliação da consciência ambiental do conjunto da população, vêm propiciando inversão de valores expressa na valorização e na demanda crescente de produtos naturais. Essa mudança de tendência ocorre de forma mais generalizada e consistente nas populações urbanas de maior renda e escolaridade e em meio às pessoas participantes de organizações sociais de diversos tipos. Entretanto, esse reconhecimento da importância do meio ambiente e dos produtos naturais ainda não está diretamente relacionado com o papel potencial da agricultura familiar do semi-árido na sociedade. Devido à condição de miséria e pobreza da maioria da população rural do semi-árido, ainda predomina na população urbana a visão estigmatizada desse segmento social. Também é comum a autovisão negativa por parte dos agricultores familiares, principalmente em meio à população mais jovem. Desse modo, os esforços recentes de valorização da agricultura familiar empreendidos pelas organizações de representação e entidades de apoio são fundamentais. Os resultados iniciais, ainda numericamente pouco expressivos, são de grande importância para a construção da cidadania no campo.

Nesse contexto, o trabalho mais relevante tem sido empreendido pelas mulheres trabalhadoras rurais. A construção de suas identidades a partir da reflexão das relações de gênero na unidade familiar, em suas organizações e na sociedade tem avançado de maneira ampla e consistente, reconhecendo-se, entretanto, o longo caminho a se percorrer. A ação mais recente, mas ainda menos estruturada, está sendo desenvolvida junto à juventude rural. Nesse caso tem-se o duplo desafio de sensibilizar seus membros para a valorização de sua condição de jovem agricultor(a) e, ao mesmo tempo, criar as condições de trabalho e renda capazes de garantir sua permanência no campo. Observa-se também um incipiente trabalho relacionado às questões étnicas no conjunto da agricultura familiar do semi-árido. A auto-identificação de comunidades indígenas e negras, o resgate de suas identidades, o reconhecimento de seus direitos pela sociedade e pelo Estado são passos importantes na valorização da diversidade da população que vive e trabalha no semi-árido brasileiro.

A análise dos avanços e dos pontos de estrangulamento da dimensão político-organizativa na construção da transição agroecológica passa inicialmente pela identificação dos principais atores interessadas em um novo modelo de desenvolvimento rural, para o Brasil e para o semi-árido em particular. Nesse sentido, considera-se a seguinte base organizativa: movimento sindical dos trabalhadores e trabalhadoras rurais, movimento dos sem terra, movimento associativo e cooperativo, ONGs, instituições vinculadas às igrejas e partidos políticos progressistas. Parte-se também da idéia de que a transformação da consciência social agroecológica em força política depende do nível de organização do “bloco agroecológico” no interior desse conjunto. De início vale observar que possivelmente nessa dimensão residem as maiores fragilidades para a transição agroecológica no semi-árido. Esta síntese está relacionada com a análise de cada segmento, conforme se segue:

Do ponto de vista quantitativo e territorial, o Movimento Sindical dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais – MSTTR é sem dúvida a estrutura organizativa mais forte no semi-árido. Entretanto, sua estratégia central, a construção do Projeto Alternativo de Desenvolvimento Rural Sustentável – PADRS, de âmbito nacional, implementada pelas ações de massa, como o Grito da Terra Brasil e a Marcha das Margaridas e por ações mais permanentes por meio do PDLS, não tem a agroecologia como referência teórica para sua construção. Diversos sindicatos e algumas regionais, pólos sindicais e federações, contudo, já incorporaram, em graus variados, a agroecologia e a convivência com o semi-árido como elementos centrais na construção do PADRS. Ainda no campo sindical, vale ressaltar que a entrada da Central Única dos Trabalhadores – CUT, por intermédio da Agência de Desenvolvimento Solidário – ADS, no debate e na construção de um novo modelo de desenvolvimento, mesmo sem vinculação direta com a agroecologia, é um elemento favorável para o trabalho desse tema no semi-árido. 

Outro importante ator nacional atuante no semi-árido é o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra – MST. Até pouco tempo atrás, essa organização não poderia ser relacionada no campo da agroecologia, mas parece estar havendo um redirecionamento em função de questões mais gerais. No semi-árido, a tentativa inicial de modernização tecnológica químico-mecânica dos assentamentos mediante projetos de financiamento, aliada à organização coletivista da produção, mostrou-se bastante inadequada. Não foi possível obter informações confiáveis sobre até que ponto a agroecologia e a convivência no semi-árido têm sido trabalhadas pelo MST para reverter essas dificuldades. De modo geral, poucos assentamentos localizados no semi-árido, vinculados ao MST e/ou ao MSTTR, têm conseguido avançar nas dimensões produtiva, ambiental e comercial, o que gerou a formulação de uma ação específica do governo federal, o Projeto Dom Helder Câmara, que aponta a agroecologia como base técnica para o semi-árido.

A transição agroecológica nessa região vai exigir uma organização de base muito ampla, representada pelas associações comunitárias e de produtores. Também não foi possível trabalhar com informações seguras nesse campo, mas é corrente a análise apontando a vinculação e a dependência da maioria dessas organizações aos programas governamentais, desde sua criação. Por outro lado, são muitas as organizações desse tipo que dão suporte ao trabalho com agroecologia junto às famílias dos agricultores familiares, e sem dúvida elas têm desempenhado papel fundamental na expansão da agroecologia no semi-árido. Um dos pontos de estrangulamento desse trabalho é a relativa dispersão e desarticulação entre essas formas organizativas e o MSTTR. Além do movimento associativista, deve-se também considerar o cooperativista, que, no geral, tem histórico bastante negativista, ainda que exista uma dinâmica de renovação, com criação de novas e pequenas cooperativas de agricultores familiares, incluindo algumas de crédito. A interiorização da agroecologia nessas estruturas organizativas pode ser observada, sendo necessário avançar nesse campo, até para viabilizar o crédito para a transição agroecológica. Analisando-se o papel das ONGs e da estrutura das igrejas em termos político-organizativos, pode-se observar a importância da articulação entre esses dois atores na constituição da ASA e na implementação do P1MC, o que pode resultar numa forte organização mais permanente, abrangendo todo o semi-árido. Em relação aos partidos políticos progressistas, tem-se ainda um distanciamento em relação ao que está sendo construído, embora exista certa valorização dessa experiência. Em alguns temas, como a transposição de bacias, há sinais de posicionamentos diferenciados entre os partidos e as demais organizações atuantes na questão dos recursos hídricos.

A transformação das diversas experiências agroecológicas em políticas públicas para a agricultura familiar tem sido uma batalha constante de todas as organizações da sociedade civil atuantes no semi-árido. Do ponto de vista mais geral, as ações relacionadas com captação, armazenamento e uso da água, em especial a cisterna de placas, têm sensibilizado os gestores públicos em todos os níveis administrativos, resultando em parcerias efetivas para a elaboração e implementação de programas com recursos públicos.

As propostas de transformação dos sistemas produtivos têm apresentado mais dificuldades, mas algumas delas, como a apicultura, as casas de sementes, o manejo da caatinga e a criação de ovinos e caprinos e de aves, o algodão orgânico, o processamento da produção, etc., também têm sido incorporadas por um pequeno número de prefeituras e programas de financiamento, a exemplo do Programa de Financiamento à Conservação e Controle do Meio Ambiente do Banco do Nordeste – FNE Verde. Propostas mais ousadas, como a agroflorestação, ainda estão restritas às dinâmicas da própria sociedade civil. Os serviços de assistência técnica para a transição agroecológica e de apoio à comercialização também têm sido objeto de poucas iniciativas em termos de políticas públicas. Se no geral os avanços foram poucos, alguns bons resultados nas ações específicas vêm sendo alcançados, o que permite construir um banco de idéias e projetos para a expansão das políticas públicas baseadas na agroecologia.

Apontar tendências, a partir de um conjunto de experiências pontuais parcialmente conectadas, é certamente uma temeridade, mas a importância e a pertinência do debate justificam os risco dessa empreitada com sabor de futurologia. O desafio consiste em fazer uma prospeção sobre para qual padrão de organização técnica, fundiária e socioeconômica tende esse conjunto de experiências em desenvolvimento no semi-árido.

Considerando as imensas desigualdades existentes na atualidade, de modo geral, a tendência para o semi-árido é a de coexistência, por um largo tempo, de quatro padrões tecnológicos: o tradicional, o químico-mecânico, o biotecnológico/transgênico e o agroecológico.

A falta de perspectiva de futuro para quem adota o padrão tradicional e as dificuldades de estabelecimento do padrão químico-mecânico na complexa realidade socioambiental do semi-árido sinalizam que esses dois padrões tendem ao declínio progressivo, estando a velocidade e a orientação dessas mudanças relacionadas com a capacidade de ação do “bloco agroecológico”. Considerando os processos desencadeados por esse bloco, expressos nos resultados positivos das referências agroecológicas já estabelecidas e no crescente envolvimento das organizações sindicais, associativas e cooperativas e das entidades de apoio com a difusão dessas experiências, pode-se conjecturar que o padrão agroecológico, articulado a uma mecanização mais criteriosa, será a base tecnológica de um significativo contingente da agricultura familiar e possivelmente de parcela da própria agricultura patronal.

Quanto ao padrão fundiário que está sendo construído, considerando os avanços e percalços da reforma agrária no semi-árido até o momento, podem-se antever as seguintes tendências: diminuição do número de unidades familiares entre um e quatro módulos fiscais de cada região e expansão do número de propriedades abaixo de um módulo fiscal, pois a subdivisão por herança é um processo de difícil estancamento nas próximas décadas. Mesclados a essas pequenas unidades familiares, os assentamentos de maior porte, originários da desapropriação das grandes fazendas pelo governo federal, devem ter seu número aumentado, principalmente nas áreas sertanejas mais secas. Além disso, pode-se antever um significativo incremento de assentamentos de menor porte, viabilizados por programas estaduais de reforma agrária e de crédito fundiário. Eles permitirão o acesso à terra aos atuais sem terra, moradores em regiões que dispõem de poucas áreas passíveis de desapropriação. Vale lembrar que muitos deles são integrantes das várias associações comunitárias existentes, fruto do crescente processo de organização social da população rural, com todas as dificuldades e distorções observadas. Registre-se também que parte da população urbana dos numerosos pequenos municípios espalhados pelo semi-árido, ainda vinculada às atividades agrícolas, será beneficiária desse processo e também deverá estar inserida na estrutura fundiária de forma mais segura, superando a precariedade atual em termos de posse e uso da terra. Em síntese, a tendência geral de democratização do acesso à terra deve consolidar-se, podendo o ritmo e a velocidade do processo acelerarem-se, em função do perfil dos próximos governantes.

Analisando os aspectos socioeconômicos que estão sendo gestados pelas experiências do bloco da agricultura sustentável, podem-se perceber dois caminhos. Um deles está apostando na difusão desse padrão tecnológico para todas as formas de organização socioecônomicas, sem distinção entre agricultura patronal e agricultura familiar. O outro caminho, referenciado no desenvolvimento rural solidário e sustentável, aponta para a articulação entre agricultura familiar, agroecologia e socioeconomia solidária como base para a convivência no semi-árido. Seguindo os passos do poeta, é nesse segundo caminho, construído no próprio caminhar, que residem as esperanças de construção de um novo padrão de organização social e técnica da agricultura do semi-árido. Caminhemos.

segunda-feira, 7 de setembro de 2020

Esquerdas de Fortaleza, uni-vos! - Parte I

ESQUERDAS DE FORTALEZA, UNI-VOS! PARTE I Eduardo Martins Barbosa Fortaleza, 07 de setembro de 2020. 198º ano do Grito do Ipiranga e 26º do Grito dos Excluídos APRESENTAÇÃO “Esquerdas de Fortaleza, uni-vos!”, é um pequeno estudo que estou desenvolvendo baseado no livro “Esquerdas do mundo, uni-vos!” do Prof. Boaventura de Souza Santos. O texto está sendo escrito em etapas e escolhi o dia 07 de setembro para divulgar a primeira parte deste estudo. Participo de diversas redes sociais e coletivos políticos autônomos que se tornaram espaços de vivos e acalorados debates virtuais, nesta inusitada, complexa, desafiante e instigante conjuntura política no contexto da pandemia da Covid19. Estas novas formas de organização política da sociedade surgem, em grande parte, devido à insuficiência das ambiências dos partidos políticos de esquerda para a reflexão mais livre e aprofundada dos desafios desta segunda década do século XXI. Faço esse registro na condição de petista desde 1981, portanto histórico e enquadrado na categoria dos jurássicos. Me situo no campo político que pretende que o PT elabore e implemente estratégias capazes de apontar para a superação do capitalismo, considerando a sua forma neoliberal global contemporânea, apostando na construção de uma democracia pujante, frente às ameaças da expansão neofacista e totalitária impulsionadas pelas forças políticas militarizadas, de extrema direita e direita no mundo, expressas no Brasil pela emergência do bolsonarismo. Este meu estudo insere-se na prática da análise da conjuntura política que venho realizando a muito tempo. De início e guardadas as devidas proporções, registro dois significativos eventos políticos no final de 2020 – as eleições presidenciais americanas e as eleições municipais brasileiras. No processo das primárias americanas o surgimento de um movimento de esquerda, expresso em diversas candidaturas do Partido Democrata, com destaque para o senador Benier Sanders, mesmo sem alcançar um êxito direto, e os recentes e persistentes movimentos antiracistas são importantes elementos conjunturais a serem observados. No contexto brasileiro é evidente a incapacidade da oposição democrática e de esquerda de impor uma derrota ao bolsonarismo, seja por meio do impeachment ou da pressão para a cassação da chapa Bolsonaro/Mourão. A fragmentação em diversas candidaturas em praticamente todas as capitais e nas grandes cidades onde as eleições são disputadas em dois turnos é, até o momento, a evidência mais destacada pelos cientistas e analistas políticos nas suas observações sobre o processo político eleitoral em curso. Neste contexto, as discussões sobre frentes, sejam elas sociais, políticas, partidárias ou eleitorais foram se desenvolvendo e a histórica dificuldade da unidade da esquerda voltou a ser um tema recorrente neste debate. Assim a necessidade do meu próprio preparo para participar das discussões internas, no PT e nos coletivos e redes em que estou inserido, aliadas ao gosto pelo planejamento estratégico, me levaram a leitura do livro “Esquerdas do mundo, uni-vos!” do Prof. Boaventura de Souza Santos e posteriormente ao desenvolvimento do estudo. Fiz a leitura detalhada desta pequena e interessante obra com os olhos e as inquietudes da conjuntura política marcada pela Pandemia da Covid-19 e as eleições municipais de 2020. Partindo da ideia que é possível aprender com as experiências da esquerda em outros contextos, resolvi elaborar esta pequena contribuição ao debate atual, a partir desta reflexão do autor, que também se enveredou pela análise de conjuntura, que ele mesmo registra não ser o foco principal da sua produção acadêmica, conforme vemos a seguir: “Tenho preferência pelas questões de fundo, coloco-me sempre numa perspectiva de médio e longo prazos e evito entrar nas conjunturas de momento. Neste livro, sigo um ponto de vista diferente: centro-me na análise da conjuntura de alguns países – e é a partir dela que apresento questões de fundo e me movo para escalas temporais de médio e longo prazos”. (BSS.p.7/8) Ele ressalta que o texto foi concluído no início de fevereiro de 2018 e destaca que para a edição brasileira “escrevi uma longa introdução sobre a encruzilhada em que, em minha opinião, se encontra a democracia do país.” A eleição de Bolsonaro é o desfecho trágico que vivenciamos no final de 2018. Nesta primeira parte vou me dedicar a análise de um dos elementos da profunda derrota sofrida pela esquerda, de certa forma antecipada pelo autor. Voltando a ideia de aprender com os outros e destacando que este texto não é um artigo de ciência política, mas simplesmente uma reflexão pessoal para o debate nos espaços onde estou inserido, preciso também esclarecer que o mérito principal deste artigo não é meu, mas do autor a quem recorri para fundamentar as minhas reflexões e análises, a partir deste convite às “aprendizagens globais” que ele nos faz: “Num mundo cada vez mais interdependente, tenho insistido na necessidade de aprendizagens globais. Nenhum país, cultura ou continente pode hoje arrogar-se o privilégio de ter encontrado a melhor solução para os problemas com que o mundo se confronta e muito menos o direito de a impor a outros países, culturas ou continentes. A alternativa está nas aprendizagens globais, sem perder de vista os contextos e as necessidades específicas de cada um. Tenho defendido as epistemologias do Sul como uma das vias para promover tais aprendizagens – e de o fazer a partir das experiências dos grupos sociais que sofrem nos diferentes países a exclusão e a discriminação causadas pelo capitalismo, pelo colonialismo e pelo patriarcado. Ora, as necessidades e as aspirações de tais grupos sociais devem ser a referência privilegiada das forças de esquerda em todo o mundo, sendo as aprendizagens globais um instrumento precioso nesse sentido.” (BSS.p.8/9) Procurando uma forma didática de fazer essa aprendizagem, decidi separar minhas reflexões e escritos em partes, levando em conta a própria dinâmica do processo político eleitoral em curso. “Esquerdas de Fortaleza uni-vos! – Parte I” é um pequeno texto que espero ser útil para os companheiros e companheiras que compartilham muitos sonhos comuns nos diversos espaços como a Rede de Comitês Populares pela Democracia/Veleiro Vermelho/Programa Café com Democracia, Movimento Democracia Participativa/WebRádioTV Atitude Popular/Programa Democracia no Ar, Coletivo Amanhã Há de Ser Outro Dia, Coletivo Mandacaru, Movimento Fé e Política, Coletivo Girassóis Espíritas pelo Bem Comum, Rede Ceará de Comunhão, Rede EcoCeará e outros. Por fim, dedico este estudo a todas as pessoas que fazem minha existência neste espaço/tempo ser uma experiência ímpar. METODOLOGIA Resolvi inserir este item para ressaltar que essa minha contribuição é simplesmente um exercício de leitura atenta, pequenos recortes copiados do original, sempre registrados em “Calibri itálico 10” e identificados no final com a forma (BSS. p._) e alguns poucos comentários e análises de minha autoria procurando contextualizar a contribuição do Prof. Boaventura (leitura da conjuntura em fevereiro de 2018) para a conjuntura política brasileira, com foco em Fortaleza, tendo como referência o dia 07 de setembro de 2020. Neste sentido, destaco a ressalva do autor, logo no prefácio: “Dada a natureza da reflexão e da análise feitas, muito do que está escrito aqui (neste texto concluído no início de fevereiro de 2018) talvez não tenha atualidade alguma dentro de meses – ou mesmo semanas. A utilidade dele pode estar precisamente nisso, no fato de proporcionar uma análise retrospectiva da atualidade política e do modo como ela nos confronta quando não sabemos como vai se desenrolar. E também pode contribuir para ilustrar a humildade com que as análises devem ser feitas e a distância crítica com que devem ser recebidas. Talvez este livro possa ser lido como uma análise não conjuntural da conjuntura.” (BSS.p.8) O texto que ora disponibilizo, embora siga o ordenamento do livro, foi estruturado na forma de tópicos escolhidos, recortados e numerados pela relevância por mim identificada durante a leitura do livro, tendo como referência maior a experiência de constituição da Geringonça Portuguesa. Do prefácio trouxe o conceito de esquerda e da introdução selecionei os desafios. Do capítulo 1 – “O novo interregno”, não selecionei nenhum tópico para esta primeira parte. Do capítulo 2 – “As forças de esquerda perante o novo interregno”, trouxe as quatro premissas identificadas no item – “A articulação entre forças de esquerda – o caso português”. Deste mesmo capítulo me dediquei com mais afinco ao estudo do item “Qual é o significado mais global dessa inovação política? Onze teses para articulações limitadas entre forças políticas de esquerda”. A título de conclusão desta Parte I do estudo procurei apresentar alguns elementos sobre um possível “Acordo Geral de Procedimentos” e sobre potenciais “Acordos Programáticos Progressivos e Detalhados”, todos no que chamei de “Contexto Alencarino”. DESENVOLVIMENTO DO ESTUDO “Esquerdas de Fortaleza uni-vos! – Parte I” é um pequeno texto que trata diretamente do potencial posicionamento das lideranças partidárias de esquerda no processo político-eleitoral de 2020 em Fortaleza, caso a intervenção eleitoral, unificada, coordenada ou articulada, fosse um objetivo central ou ao menos relevante. Conceito de Esquerda Na discussão sobre “Frente de Esquerda” e “Frente Ampla” a definição sobre quais forças políticas e partidárias de âmbito nacional estão no campo de esquerda e quais não são de esquerda, mas devem compor a frente ampla é um ponto chave. Aqui neste texto adotamos a formulação proposta pelo Prof. Boaventura: “De partida, devo tornar claro o que entendo por esquerda. Esquerda é o conjunto de teorias e práticas transformadoras que, ao longo dos últimos 150 anos, resistiram à expansão do capitalismo e aos tipos de relações econômicas, sociais, políticas e culturais que ele gera e que, assim, procederam na crença da possibilidade de um futuro pós-capitalista, de uma sociedade alternativa, mais justa, porque orientada para a satisfação das necessidades reais das populações, e mais livre, porque centrada na realização das condições do efetivo exercício da liberdade.” (BSS.p.8) A aplicação prática deste conceito para a realidade de Fortaleza não foi desenvolvida nesta primeira parte do estudo. Será o objeto central de uma outra parte que estou redigindo. Os Dois Desafios, as Quatro Premissas e as Onze Teses Aplicadas no Contexto das Eleições 2020 em Fortaleza Este conjunto de elementos estudados e comentados compõem uma unidade de análise pois estão intimamente relacionados. Para efeito didático eles foram tratados e estão sendo apresentados individualmente. Os Dois Desafios Os dois desafios fazem parte da introdução à edição brasileira “A democracia brasileira na encruzilhada” que originalmente se divide nos seguintes tópicos: i) A conjuntura eleitoral, ii) O Brasil profundo, iii) A intervenção imperial, iv) Resistência e alternativa e v) Os desafios. Boaventura faz uma interessante apresentação do dilema democrático vivenciado pela sociedade brasileira depois de 30 anos de vivência democrática instituída pela CF88. “O primeiro tem algo de dilemático, porque implica agir como se a democracia estivesse funcionando com mínima consistência, sabendo de antemão que não está. A democracia funciona segundo a lógica de processos certos para a obtenção de resultados incertos. A constituição regulamentar de partidos, os sistemas e as leis eleitorais, o funcionamento de instâncias de controle dos processos de disputa política, a liberdade de expressão, o acesso à informação e à comunicação, tudo isso são processos que devem funcionar com grande regularidade e certeza, ou seja, para que possa ganhar A ou B, para que não se saiba de antemão o resultado, independentemente do comportamento dos eleitores; enfim para que não seja possível ganhar sempre nem perder sempre.” (BSS. p.20/21) Ainda tratando deste primeiro desafio ele identifica uma crescente incerteza dos processos democráticos em todo o mundo devido a três fatores fundamentais: i) manipulação pelos monopólios midiáticos, ii) financiamento extremamente desigual das campanhas eleitorais e iii) corrupção em geral. E conclui que “A incerteza dos processos é promovida para conseguir resultados certos, ou seja, a vitória dos candidatos apoiados. Essa inversão da relação entre processos e resultados é fatal para o futuro da democracia”. (BSS. p.21). O autor avança na análise deste desafio na situação concreta do Brasil, mas estes elementos não são o foco desta primeira parte do estudo. Passo, portanto, para o segundo desafio que é a tradicional fragmentação da esquerda. “E ainda há outro, não menos rigoroso. As forças de esquerda têm estado tradicionalmente fragmentadas, divididas por múltiplas diferenças, as vezes tão profundas que implicam transformar forças de esquerda rivais em inimigos principais. Por razões que se explicam pelo passado, mas que serão suicidas num futuro caracterizado pelo perigo da sobrevivência da democracia, as esquerdas não tem sabido distinguir entre diferenças reais e pragmáticas, suscetíveis de acomodação e negociação, e diferenças ideológicas que, por vezes, assumem a forma de cismas dogmáticos muito próximos dos que no passado dividiram as religiões e levaram a lutas fraticidas. Este livro é um modesto contributo para que este último desafio seja enfrentado com sucesso, na certeza de que, se o não for, a democracia acabará por soçobrar. Nesse caso, as forças de esquerda serão as primeiras vítimas, e todas por igual, independentemente das divisões que agora as tornam tão diferentes”. (BSS. p. 22/23) As Quatro Premissas nos Acordos entre as Esquerdas Portuguesas e entre as Esquerdas Alencarinas Seguindo o roteiro proposto, este tópico foi tratado originalmente pelo autor nas páginas 42 e 43 e inicia-se com a seguinte constatação: “A inovação desses acordos consistiu em várias premissas”: O procedimento adotado neste artigo foi estabelecer um quadro comparativo entre o que foi chamado de “Premissas Portuguesas” e as possíveis “Premissas Alencarinas”, estas últimas como propostas preliminares para o debate entre as forças da esquerda cearense. Premissa 01 Enunciado: Os acordos eram limitados e pragmáticos e estavam centrados em menores denominadores comuns com o objetivo de possibilitar um governo que impedisse a continuação das políticas de empobrecimento dos portugueses que os partidos de direita neoliberal tinham aplicado no país. (BSS. p.42) Considerações e Indicativos: Para a situação de Fortaleza, também proponho acordos centrados em menores denominadores comuns com o objetivo de impedir que as forças bolsonaristas e milicianas abrigadas nos partidos de extrema direita, direita e centro-direita, conservadores e neoliberais assumam o governo municipal para aplicar suas políticas na capital cearense. A constituição de uma mesa de convergências e controvérsias e um programa mínimo comum, são dois instrumentos propostos para o início da montagem dos acordos mais abrangentes. Premissa 02 Enunciado: Os partidos mantinham ciosamente sua identidade programática, suas bandeiras, e tornavam claro que os acordos não as punham em risco, porque a resposta à conjuntura política não exigia que fossem consideradas, muito menos abandonadas. (BSS. p.42) Considerações e Indicativos: Esta é uma premissa fundamental no quadro partidário local, pois a histórica pulverização da votação para a Câmara Municipal gera um desafio enorme para cada partido manter a sua representação, ainda mais com a proibição das coligações proporcionais a partir deste pleito de 2020. A efetivação da cláusula de desempenho a partir de 2021 também é fator de busca de fortalecimento individual de cada partido nestas eleições. Importante ressaltar que a regra em vigor desde 2018 define que a partir destas eleições só podem ser eleitos aqueles candidatos a vereador que tiverem votação igual ou superior a 10% do quociente eleitoral (divisão do total de votos válidos da eleição pelo número de vagas). Neste contexto eleitoral com tantas novidades legais, a proposta é que cada partido mantenha ciosamente sua identidade programática e suas bandeiras, garantindo que os acordos a serem celebrados não as ponham em risco, pois a conjuntura política exige o fortalecimento e a democratização dos partidos políticos de esquerda. Premissa 03 Enunciado: O governo devia ter coerência e, para isso, devia ser da responsabilidade de um só partido, e o apoio parlamentar garantiria sua estabilidade. (BSS. p.42) Considerações e Indicativos: No sistema de governo brasileiro instituído pela CF88 e suas alterações, tem-se para o âmbito municipal o que pode ser chamado de “Prefeituralismo de Coalizão”. A construção da governabilidade parlamentar é certamente um ponto crítico central a ser tratado nos acordos de construção de unidade. A governabilidade parlamentar condiciona fortemente a composição do secretariado municipal e se estende para o complexo e intricado sistema de cargos de confiança disseminado em toda estrutura administrativa. Áreas de excelência e de mediocridade gerencial podem ser observadas simultaneamente, tanto do ponto de vista setorial, como territorial. A adoção do conceito da gestão democrática por resultado é uma necessidade imperiosa na busca da coerência qualificada da gestão municipal. Premissa 04 Enunciado: Os acordos seriam celebrados de boa-fé e acompanhados e verificados regularmente pelas partes. Os textos dos acordos constituem modelos de contenção política e detalham até o pormenor os termos acordados. (BSS. p.42) Considerações e Indicativos: Os acordos serão celebrados de boa-fé e acompanhados e verificados regularmente pelo sistema de governança do acordo. As Onze Teses nos Acordos entre as Esquerdas Portuguesas e as propostas preliminares para um possível Acordo entre as Esquerdas Alencarinas Seguindo a metodologia utilizada, estruturei nesta primeira parte do estudo um conjunto de quadros reflexivos, partindo do enunciado de cada tese elaborada por Boaventura de Souza Santos e elaborei um pequeno texto contendo considerações e indicativos referentes a cada tese, no sentido de oferecer um conjunto de propostas preliminares para subsidiar a elaboração do possível acordo entre as esquerdas alencarinas. Para facilitar a discussão tomei a iniciativa de organizar as 11 teses em 04 blocos a saber: A) Teses sobre a natureza dos acordos e pressupostos para a sua construção; B) Teses sobre a identidade de esquerda; C) Teses sobre o processo democrático e D) Teses sobre a dinâmicas dos acordos. Bloco A – Teses sobre a natureza dos acordos e pressupostos para a sua construção Tese 01 Enunciado: As articulações entre partidos de esquerda podem ser de vários tipos, nomeadamente, podem resultar de acordos pré-eleitorais ou pós-eleitorais, podem envolver participação no governo ou apenas apoio parlamentar. Sempre que os partidos partem de posições ideológicas muito diferentes, e se não houver outros fatores que recomendem o contrário, é preferível optar por acordos pós-eleitorais (porque ocorrem depois de medir pesos relativos) e acordos de incidência parlamentar (porque minimizam os riscos dos parceiros minoritários e permitem que as divergências sejam mais visíveis e disponham de sistemas de alerta conhecidos dos cidadãos. (BSS. p.44) Considerações e Indicativos: No contexto brasileiro desta eleição municipal, a constituição de frentes políticas, de diversas natureza e composição, é um debate em aberto. No sentido de ajudar na organização do debate proponho a construção de um Acordo Geral de Procedimentos e Acordos Programáticos Progressivos e Detalhados, considerando as seguintes etapas: E1) Pré 1º Turno, E2) Campanha no 1º Turno, E3) Pós Primeiro Turno/Campanha de 2º Turno, E4) Fase Pós Eleitoral/Composição do Governo e E5) Exercício de Governo e Governabilidade Parlamentar e Extraparlamentar. Tese 02 Enunciado: As soluções políticas de risco pressupõem lideranças com visão política e capacidade para negociar. (BSS. p.44) Considerações e Indicativos: O Ceará vem desenvolvendo e consolidando uma ambiência política bastante propicia ao diálogo e a negociação. Nesse contexto geral favorável, as lideranças de esquerda têm, potencialmente, visão política e capacidade para negociar. Proponho uma sistemática de adesão individual e institucional de dirigentes, parlamentares, pré-candidatos e lideranças da sociedade civil ao processo proposto, expressando o interesse de negociar e construir os acordos. Tese 03 Enunciado: As soluções inovadoras e de risco não podem sair apenas da cabeça dos líderes políticos. É necessário consultar as “bases” do partido e deixar-se mobilizar pelas inquietações e pelas aspirações que manifestam. (BSS. p.45) Considerações e Indicativos: A consulta as “bases” pelos partidos de esquerda elencados neste trabalho, ocorre em menor ou maior grau, mas no geral é restrita e determinada pelos sistemas de democracia representativa interna a cada partido. Aqui é preciso aplicar o princípio de democratizar a democracia partidária. Neste sentido a proposta é construir rapidamente mecanismos simplificados de consulta digital para democratizar a construção dos acordos, tendo em visa a impossibilidade de eventos presenciais para discussão ampla e aberta sobre os temas em debate. Bloco B – Teses sobre a identidade de esquerda Tese 04 Enunciado: A articulação entre forças de esquerda só é possível quando é partilhada a vontade de não articular com outras forças, de direita nem de centro-direita. Sem uma forte identidade de esquerda, o partido ou a força de esquerda em que tal identidade for fraca será sempre um parceiro relutante, disposto a abandonar a coligação. A ideia de centro é, hoje, particularmente perigosa para a esquerda, porque, como espectro político, ele se tem deslocado para a direita por pressão do neoliberalismo e do capital financeiro. O centro tende a ser centro-direita, mesmo quando afirma ser centro-esquerda. É crucial distinguir entre uma política moderada de esquerda e uma política de centro-esquerda. A primeira pode resultar de um acordo conjuntural entre forças de esquerda, enquanto a segunda é consequência de articulações com a direita que pressupõem cumplicidades maiores, que a descaracterizam como política de esquerda.1 (BSS.p.45) Considerações e Indicativos: Avalio que esta tese é a mais crítica para a esquerda brasileira em geral e a cearense, em especial. A busca pela governabilidade parlamentar pelos governos nacionais liderados pelo PT, por meio de coalizações amplas se repetem no Ceará nos dois Governos Cid Gomes e nos dois Governos Camilo Santana. Com o Golpe de 16 e a vitória nacional do Bolsonarismo em 2018 estabelece-se uma nova polarização mais extremada, diferente da polarização PSDB X PT. A proposta dos acordos aqui esboçados parte da necessidade de proteção e fortalecimento da democracia, da resistência local ao desmonte neoliberal no plano nacional e à necessidade de fazer avançar as políticas públicas de cunho democrático e popular. Tese 05 Enunciado: Não há articulação nem unidade sem programa e sem sistemas de consulta e de alerta que avaliem regularmente o seu cumprimento. Passar cheques em branco a qualquer líder político no seio de uma coligação de esquerda é um convite ao desastre. (BSS. p.46) Considerações e Indicativos: A definição de um programa mínimo unitário de esquerda para a capital tem uma excelente referência que é a Plataforma Fortaleza 2040. A definição do compromisso em torno dos avanços que serão necessários e possíveis para o período 2021/2024 é um ponto chave. O sistema de consulta e de alerta proposto pelo autor tem no Observatório de Fortaleza uma boa referência para o conjunto das forças de esquerda convidadas para a construção da ação unitária no contexto atual. Mas este observatório é de toda sociedade e assim se faz necessário criar um organismo comum do bloco de esquerda e a proposta é que este instrumento seja estabelecido pelas Fundações dos partidos políticos envolvidos na construção dos acordos e por outras organizações ou instituições da sociedade civil do mesmo campo político que tenham esse mesmo propósito. Tese 06 Enunciado: A articulação é tanto mais viável quanto mais partilhado for o diagnóstico de que estamos num período de lutas defensivas, um período em que a democracia, mesmo a de baixa intensidade, corre sério risco de ser fortemente limitada, se não ilegalizada. (BSS. p.46) Considerações e Indicativos: A revisão do diagnóstico em função da pandemia é uma necessidade urgente. No processo de atualização do diagnóstico do Fortaleza 2040, proponho a definição de um “Núcleo Consensual” e o registro dos pontos divergentes de cada força ou partido político. O balanço entre a força nacional e local do bolsonarismo e a força da esquerda no Nordeste, no Ceará e em Fortaleza, em especial, precisa ser muito preciso para a esquerda não sofrer uma derrota estratégica na capital alencarina. 1 Neste domínio, a solução portuguesa se oferece a uma reflexão mais aprofundada. Embora constitua uma articulação entre forças de esquerda e eu considere que configura uma política moderada de esquerda, a verdade é que contém, por ação ou por omissão, algumas opções que implicam cedências graves aos interesses que normalmente são defendidas pela direita. Por exemplo, no domínio do direito ao trabalho e à saúde. Tudo leva a crer que o teste da vontade real de garantir a sustentabilidade da unidade das esquerdas está no que for decidido nessas áreas no futuro próximo. Bloco C – Teses sobre o processo democrático Tese 07 Enunciado: A disputa eleitoral precisa ter credibilidade mínima. Para isso, deve assentar-se num sistema eleitoral que garanta a certeza dos processos eleitorais de modo que os resultados da disputa eleitoral sejam incertos. (BSS. p.46) Considerações e Indicativos: O sistema eleitoral brasileiro ainda conta com a credibilidade mínima para a sociedade exercitar a disputa eleitoral. O preceito democrático “processos certos para garantir resultados incertos” está em plena vigência, no contexto da formação econômica capitalista brasileira. Entretanto, pontos críticos relacionados às práticas de manipulação das plataformas sociais por meio de robôs, aliadas à disseminação de fake news e a influência do poder econômico nas campanhas eleitorais são desafios para a efetividade da justiça eleitoral. Tese 08 Enunciado: A vontade de convergir nunca pode neutralizar a necessidade de eventualmente divergir. Consoante os contextos e as condições, pode ser tão fundamental convergir como divergir. Mesmo durante a vigência das coligações, as diferentes forças de esquerda devem manter canais de divergência construtiva. Quando ela deixar de ser construtiva, o fim da coligação estará próximo. (BSS. p.46) Considerações e Indicativos: Garantir espaço para divergências levando-se em conta a cultura política brasileira e as configurações dos governos de coalizão ampla, vigentes na atualidade, é um desafio e tanto. A construção da unidade das esquerdas em Fortaleza no contexto de ataque à democracia pelas forças de direita, inclusive com perfil político militar, traz a necessidade de aprofundar o debate sobre os limites dessas divergências, ou seja, qual a linha divisória entre a divergência construtiva e a divergência destrutiva. Será certamente um trabalho paciente e meticuloso a ser realizado tendo como referência uma questão a ser respondida de forma recorrente pelas esquerdas em todas os seus matizes: O que nos une? É, sem dúvida, uma forte mudança da cultura política predominante entre as forças de esquerda. Tese 09 Enunciado: Num contexto midiático e comunicacional hostil às políticas de esquerda, num contexto em que notícias falsas proliferam, as redes sociais podem potencializar a intriga e a desconfiança e as chamadas de capa contam mais que conteúdos e argumentações, é decisivo que haja canais de comunicação constantes e eficazes entre os parceiros da coligação e que equívocos sejam prontamente esclarecidos. (BSS. p.46) Considerações e Indicativos: A consciência que a comunicação é uma das maiores fragilidades das esquerdas é o primeiro passo para o enfrentamento do problema. Diversas iniciativas recentes das organizações democráticas e populares e dos partidos políticos vão neste sentido. Do ponto de vista de construção dos acordos para a unidade das esquerdas, sugiro como uma primeira medida a elaboração de uma carta compromisso estabelecendo os marcos da comunicação ética entre as forças, partidos e lideranças, definindo claramente os canais de comunicação e os tipos de mensagens necessárias para a garantia da qualidade e da presteza das comunicações, vitais para o fortalecimento da unidade das esquerdas. Bloco D – Teses sobre a dinâmicas dos acordos Tese 10 Enunciado: Nunca esquecer os limites dos acordos, quer para não criar expectativas exageradas, que para saber avançar para outros acordos ou romper os existentes quando as condições permitirem políticas mais avançadas.2 (BSS. p.47) Considerações e Indicativos: Esta tese tem, por um lado, o mesmo sentido do princípio da precaução aplicado à proteção do meio ambiente. A proteção da democracia passa pela capacidade real do sistema político gerar soluções concretas para a população, por meio de políticas públicas voltadas prioritariamente para as populações mais vulneráveis. Por isso a precaução com os limites dos acordos. Para se chegar a um determinado acordo é necessário identificar claramente os interesses em jogo, ou seja, as diferenças, as controvérsias e os interesses em conflito, a partir das posições dos diversos atores envolvidos no jogo democrático. Cada acordo representa a superação daqueles aspectos conflitivos por meio do entendimento político a partir das regras democráticas estabelecidas. Mas a própria vida em sociedade recoloca indefinidamente novos conflitos e um determinado acordo pode se esgotar e exigir novos acordos a partir dos avanços alcançados. A forte desigualdade social brasileira e fortalezense, em particular, exige o cuidado para não se propagar a ideia que os acordos vão resolver de imediato e num passe de mágica os problemas estruturais historicamente constituídos e, ao mesmo tempo, não tolher o processo de negociação de um novo acordo, na medida que as condições políticas permitam um novo patamar de soluções para os conflitos existentes. Tese 11 Enunciado: No contexto atual de asfixiante doutrinação neoliberal, a implementação de alternativas, por mais limitadas, têm, quando realizadas com êxito, além do impacto concreto e benéfico na vida dos cidadãos, um efeito simbólico decisivo que consiste em desfazer o mito de que os partidos de esquerda-esquerda só servem para protestar e não sabem negociar nem muito menos assumir as complexas responsabilidades de governança. Esse mito foi alimentado pelas forças conservadoras ao longo de décadas, com a cumplicidade da grande mídia, e tem hoje a reforçá-lo o poder disciplinar global que o neoliberalismo adquiriu nas últimas décadas. (BSS. p.47) Considerações e Indicativos: Avaliamos que a experiência em curso no Ceará desde 2006, de governos de coalização ampla, liderados pela esquerda moderada enquadra-se muito bem nesta tese. O poder disciplinar global do neoliberalismo é fortemente sentido por meio da pressão das elites locais sobre o governo e da própria vigência de um modelo de desenvolvimento baseado na política de incentivos fiscais para atração de capital externo, de outras regiões do país e de outros países, estabelecido ainda no final do século XX. Embora avanços evidentes em alguns setores, com destaque para a educação, a manutenção da forte desigualdade econômica e social e a dificuldade de redução efetiva da pobreza e da extrema pobreza ainda são marcas fortes da realidade cearense. O delineamento de um novo percurso para o desenvolvimento do Estado ainda está em processo de construção. A Plataforma Ceará 2050 procurou tratar desse tema, mas no meu modo de ver, ainda fortemente alinhada com a perspectiva neoliberal global. A pandemia da Covid19 lança novos desafios neste debate. CONCLUSÃO Acordo Geral de Procedimentos e Acordos Programáticos Progressivos e Detalhados Conforme proposto nas considerações e indicativos da Tese 01, foram elencadas as seguintes etapas: E1) Pré 1º Turno, E2) Campanha no 1º Turno, E3) Pós Primeiro Turno/Campanha de 2º 2 No caso português, os detalhados acordos entre os três partidos revelam bem o caráter defensivo e limitado das políticas acordadas. Na União Europeia, as imposições do neoliberalismo global são veiculadas no dia a dia pela Comissão e pelo Banco Central Europeu. A resposta dos partidos de esquerda portugueses deve ser avaliada à luz da violenta resposta dessas instituições europeias às políticas iniciais do partido Syriza, na Grécia. A solução portuguesa visou criar um espaço de manobra mínimo num contexto que prefigurava uma janela de oportunidade. Recorrendo a uma metáfora, a solução portuguesa permitiu à sociedade portuguesa respirar. Ora, respirar não é o mesmo que florescer; é tão só o mesmo que sobreviver. Turno, E4) Fase Pós Eleitoral/Composição do Governo e E5) Exercício de Governo e Governabilidade Parlamentar e Extraparlamentar. Para este momento de Pré 1º turno estão sendo propostas algumas ferramentas básicas para composição de um ambiência favorável à construção dos acordos. As Ferramentas para a Construção dos Acordos Progressivos A construção dos acordos progressivos exige um conjunto de espaços e procedimentos em três esferas complementares e interligadas. Estes espaços, do ponto de vista sociológico estão sendo trabalhados tendo como referência o conceito de arena3, segundo a formulação de Norman Long (2001) em “Sociologia do Desenvolvimento”. Neste sentido foram concebidas as seguintes ferramentas: 1. A Mesa de Convergências e Controvérsias, 2. A Plataforma de Convergências e Controvérsias e 3. Os Comitês Temáticos de Convergências e Controvérsias A Mesa de Convergências e Controvérsias Esta ferramenta situa-se no plano estratégico e a iniciativa da sua constituição formal deve ser resultado de negociações preliminares entre lideranças políticas atuantes nos coletivos políticos autônomos, nas organizações classistas e nos movimentos sociais e as lideranças institucionais dos partidos políticos de esquerda, atuantes nas funções de dirigentes partidários, parlamentares e gestores públicos. Uma pequena coordenação executiva consensuada entre este grupo inicial cuidará da organização das rodadas de negociação a serem efetivadas. A Plataforma de Convergências e Controvérsias Esta ferramenta digital a ser criada vai organizar os grandes temas políticos, objetos sobre os quais vão ser organizadas as convergências e as controvérsias, tendo como referência a construção de um programa mínimo comum. Ou seja, começar de imediato pelo consenso mínimo. E mapear o conjunto das controvérsias e deixá-las explícitas para o conjunto da sociedade, ressaltando ainda o compromisso entre forças políticas de tratarem democraticamente as divergências mapeadas na Mesa de Convergências e Controvérsias. Os Comitês Temáticos de Convergências e Controvérsias Definidos os grandes temas a serem trabalhados na plataforma, serão criados comitês temáticos auto-organizados para se debruçarem sobre as problemáticas diagnosticadas, com uma abordagem técnico-política-gerencial aprofundada das opções e caminhos estratégicos apontados pelas diversas linhas políticas que conformam o amplo campo político da esquerda, identificando para cada tema/subtema a interface social4 existente, seguindo a conceituação de Norman Long (2001) em “Sociologia do Desenvolvimento”, ou outra abordagem acordada pelos comitês. Na medida que o processo de construção dos acordos progressivos for avançando, vai-se conformando uma Agenda Futura de Governo. 3 As arenas são espaços onde têm lugar as disputas sobre recursos, demandas, valores, assuntos, significados e representações: isto é, são os locais de luta que aí se dão e que atravessam os domínios. 4 Uma interface social é um ponto crítico de intersecção entre os mundos de vida, campos sociais ou níveis de organização social onde é mais provável localizar descontinuidades sociais baseadas em discrepâncias em valores, interesses, conhecimento e poder”

domingo, 7 de julho de 2013

Democracia: sintetizando leituras e reflexões.

Todos pela democracia representativa, participativa e direta. Uma não exclui a outra. Democracia só não combina com autocracia, nas suas diversa formas. A ditadura, a tirania e a guerra são as máximas expressões da autocracia. A democracia precisa da paz para desabrochar e florescer. Cultivemos a paz para colhermos democracia. Democracia e política precisam andar de mãos dadas para construir a vontade geral, resguardados os direitos das minorias. Democracia também sofre com a hierarquia. As grandes mobilizações populares e as redes sociais, com seus padrões descentralizados ou distribuídos corroem as bases da autocracia e da hierarquia, abrindo espaços para a autogestão da economia e da sociedade pelos cidadãos e cidadãs. Viva a democracia.

sábado, 22 de junho de 2013

O clamor das manifestações populares exige ousadia do PT

De maneira geral o pronunciamento da Presidenta Dilma foi positivo, mas nas propostas apresentadas senti falta de algo que tratasse objetivamente da relação entre o Poder Cidadão e os Poderes da República. Ao meu ver a contradição dialética central que emerge e se evidencia das manifestações populares é entre a nova configuração geral da sociedade brasileira decorrente das significativas transformações ocorridas pós constituição de 1988 e o arcabouço institucional decorrente dessa própria constituição, moldado pelas limitações politicas e econômicas do modelo de desenvolvimento capitalista brasileiro. O poder cidadão, a partir do questionamento econômico concreto de 0,20 centavos, estendeu, de forma difusa e multifacetada, o seu questionamento para o plano politico. A Presidenta Dilma identificou corretamente os polos da contradição, o Poder Cidadão e os Poderes da República e na condição de Chefe do Poder Executivo comprometeu-se a procurar os demais poderes e representantes das sociedade para a discussão da Reforma Política. É uma iniciativa importante, mas ao meu ver insuficiente para o clima político das ruas. O Poder Executivo Federal, ocupado democraticamente por um Governo de Coalizão ampla, pode e deve avançar no sentido do clamor que vem das ruas. O PT, que lidera esse governo, não pode deixar de aproveitar esta oportunidade histórica de propor avanços concretos em termos da democracia participativa e direta, prevista na Constituição de 88. Vamos TODOS às ruas para defender a instituição imediata do ORÇAMENTO NACIONAL PARTICIPATIVO e do SISTEMA NACIONAL DE PARTICIPAÇÃO POPULAR.