sábado, 24 de outubro de 2020

ESTRATÉGIAS DE DESENVOLVIMENTO LOCAL COM ENFOQUE AGROECOLÓGICO - ENA 2002

Eduardo Martins Barbosa

Como passar das experiências agroecológicas localizadas para uma agricultura ecológica amplamente estabelecida em uma determinada região? Essa questão tem rondado a cabeça de muita gente que há tempos vem labutando na formulação de estratégias de trabalho que possibilitem resultados mais amplos e consistentes em termos da construção de um novo modelo de desenvolvimento agrícola para o Brasil.

Como promover o desenvolvimento local nos numerosos, pequenos e pobres municípios em que a agricultura e os serviços públicos são as únicas fontes de renda para a população? Essa tem sido uma pergunta desafiadora para todos aqueles que se têm envolvido com os diversos programas de desenvolvimento local em implantação em nosso país.

O tema "estratégias de desenvolvimento local com enfoque agroecológico" reflete, assim, a preocupação da coordenação geral do ENA sobre essas questões e, de certo modo, aponta o desenvolvimento local como uma estratégia para os interessados na expansão da agroecologia; simultaneamente, essa escolha indica a agroecologia como um foco temático para os que vêm trabalhando com as concepções de desenvolvimento local de forma mais genérica. A expressão "desenvolvimento local agroecológico" pode ser a síntese desses dois necessários e promissores movimentos.

Para tratarmos do tema torna-se necessária, entretanto, uma breve reflexão sobre as origens e concepções do desenvolvimento local, pois esse é, sem dúvida, um tema central da agenda de debates da atualidade, internacionalmente.

Um dos primeiros grupos a trabalhar com a idéia de desenvolvimento local foi o movimento ambientalista, que procurou pôr em prática sua bandeira política "Pensar globalmente, agir localmente". Essa idéia foi a base da construção de muitas experiências de comunidades alternativas, na busca de um novo tipo de organização e desenvolvimento da sociedade. Outro grupo que adotou a estratégia de ação local para fazer o questionamento do atual padrão de desenvolvimento é composto pelas organizações da sociedade civil que trabalham com a ideia de ampliação da cidadania como foco da luta contra a exclusão social.

Nesse período, o processo de globalização neoliberal produziu um contexto muito favorável à (re)abertura da discussão sobre a ação local em função de duas estratégias centrais adotadas para sua implementação. Por um lado, a idéia do estado mínimo enfraqueceu a noção de estado nacional, o que provocou o ressurgimento e a valorização dos regionalismos, fortalecendo o nível local como espaço para se pensar o desenvolvimento. Por outro lado, a proposta de reestruturação produtiva por meio da flexibilização dos processos de trabalho quebrou a noção cristalizada da vantagem da produção em grande escala, em qualquer situação. Isso viabilizou iniciativas de pequena escala, de âmbito local.

Esses movimentos têm gerado muitas reflexões, no sentido de avançar na análise dos diversos aspectos que compõem o desenvolvimento local. Temas como poder local, políticas públicas, identidades locais, território, “empreendedorismo” endógeno, sustentabilidade, etc. são conceitos centrais para a análise e o planejamento do desenvolvimento local em uma perspectiva mais sistêmica. Vale ressaltar que esse debate específico faz-se no bojo do próprio debate mais geral sobre o desenvolvimento, que ressurge com força neste momento de início do declínio do ideário neoliberal, cuja presença sufocante vigorou até pouco tempo.

Essa rápida expansão da proposta de desenvolvimento local e o debate em torno de seu significado guardam semelhança com o ocorrido ao conceito de desenvolvimento sustentável e, como este último, também são concebidos e praticados de acordo com a visão de mundo e os interesses concretos de cada um dos atores atuantes na sociedade. Nesse contexto cabe a pergunta: o desenvolvimento local é uma estratégia de transformação da sociedade ou simplesmente mais uma fórmula de ajuste da reprodução do capital nestes tempos de globalização? Pode-se dizer que a resposta a essa questão não está no próprio conceito de desenvolvimento local, mas, sim, na perspectiva política de quem utiliza essa metodologia.

Isso posto, podemos voltar aos dois dilemas centrais dos agroecologistas: "como passar das experiências agroecológicas localizadas para uma agricultura ecológica amplamente estabelecida em um determinada região, na perspectiva da construção de um novo modelo de desenvolvimento agrícola para o Brasil?"; o desenvolvimento local é uma boa estratégia para efetivar esse processo?

As respostas a essas questões devem ser buscadas na reflexão sobre a prática concreta. Nesse sentido, a base de análise disponível pode ser considerada muito precária, pois ainda são poucas as experiências de desenvolvimento local cujo foco é a agroecologia, e, além disso, a sistematização dessas experiências é ainda extremamente incipiente. Levando em conta essas limitações, podem-se fazer algumas considerações preliminares, para o sentido de colaborar no debate sobre o que se está denominando "transição agroecológica" ou "modernização ecológica da agricultura brasileira".

De modo geral, diversas instituições e organizações trabalham o desenvolvimento local como uma "metodologia para promover o desenvolvimento sustentável por meio da participação multisetorial de diversos agentes, governamentais, sociais e empresariais, no planejamento, na execução, no monitoramento e na avaliação de ações integradas e convergentes em localidades determinadas".

No campo governamental os mais conhecidos são os programas Comunidade Ativa e Comunidade Que Faz, desenvolvidos pelo Conselho da Comunidade Solidária, Agência de Educação para o Desenvolvimento e Sebrae, e o Programa BNDES – Desenvolvimento Local – Cooperação Técnica, do PNUD. Existem ainda outras iniciativas de estados e municípios, muitas delas relacionadas à elaboração da Agenda 21. No campo da sociedade civil muitas ONGs adotam o desenvolvimento local como estratégia geral de trabalho, mas a Contag, por meio do Programa de Desenvolvimento Local Sustentável, foi talvez a organização que mais investiu nessa estratégia, visando a um objetivo maior, que é a construção do Projeto Alternativo de Desenvolvimento Rural Sustentável.

Tomando esta última experiência como referência, é possível fazer algumas considerações preliminares. A iniciativa da sociedade civil, em especial das organizações populares, de implementar a estratégia de desenvolvimento local encontra muitos obstáculos devido ao posicionamento fechado da maioria das administrações municipais. Nesse sentido, cabe uma reflexão sobre a pertinência e a eficácia da aplicação dessa estratégia em sua plenitude. Nos municípios e regiões em que a conjuntura política local é favorável, essa iniciativa das organizações da sociedade civil torna-se interessante. Nos espaços em que essa conjuntura é desfavorável, parece ser mais efetivo seguir as orientações básicas da metodologia, envolvendo os atores mais receptivos, no sentido de elaboração de uma agenda de desenvolvimento do próprio setor popular e seus aliados. Nos municípios e regiões de base agrícola, isso significa centrar esforços na elaboração de uma agenda de desenvolvimento rural focado na agricultura familiar, tendo como referência a agroecologia. A implementação, mesmo que lenta e gradativa dessa agenda, é o principal elemento de acúmulo de experiência, capaz de ser posteriormente traduzida em propostas de políticas públicas para negociação com o poder local.

De modo geral, três situações podem ser consideradas. Nos territórios em que, embora não se praticando o desenvolvimento local, já exista um trabalho inicial com agroecologia realizado por ONGs e organizações da agricultura familiar, cabe fazer uma leitura das estratégias atuais à luz das concepções do desenvolvimento local, no sentido de gradativamente se passar de uma ação local comunitária para uma ação local mais abrangente, avançando também do trabalho de transição agroecológica no nível dos sistemas de produção para a transição no âmbito de toda a unidade de produção familiar e da própria comunidade. Essa transição caracteriza-se pela consolidação da agrobiodiversidade local, que deve ser combinada com a abordagem por produto, constituindo-se em novo campo de trabalho, da porteira para fora, que é a estruturação das cadeias produtivas, das redes de socioeconomia solidária e/ou dos complexos de cooperação solidária. Esse movimento só será possível com a estruturação de um sistema de organização da agricultura familiar, envolvendo as atuais e as novas formas organizativas e um sistema institucional de apoio ao desenvolvimento local, que inclua capacitação, finanças e acompanhamento técnico. Esses dois sistemas interconectados são essenciais à implementação da agenda de desenvolvimento local.

Nos territórios em que processos de desenvolvimento local tenham sido iniciados e a agroecologia não tenha sido adotada como referencial de mudança, o desafio consiste em trabalhar a temática agroecológica por dentro dos processos de capacitação, de modo a se obter ampla adesão a essa visão, ainda que inicialmente teórica. Um estudo propositivo da agricultura familiar do território, fundamentado na agroecologia, pode ser excelente instrumento de readequação da agenda local na perspectiva do desenvolvimento local agroecológico.

Onde ainda não existir trabalho preliminar com desenvolvimento local nem com agroecologia, torna-se necessário dar início à geração do conhecimento agroecológico para o território, como parte integrante do processo de implantação da própria metodologia do desenvolvimento local. Um elemento básico nesses casos consiste na estruturação de unidades agroecológicas de referência, a partir da seleção de agricultores interessados em iniciar a transição ecológica o mais breve possível. Visitas de intercâmbio a outras áreas com experiências mais avançadas, o estudo propositivo da agricultura familiar e a estruturação de um sistema local de inovações são imprescindíveis nessas situações.

A importância das estratégias de desenvolvimento local com enfoque agroecológico é inegável, o que não pode, entretanto, ser dissociado de uma estratégia de desenvolvimento para o país. Alguns apontam que essa estratégia é a "transformação do social na essência do desenvolvimento econômico". Se ela contempla ou não a perspectiva do desenvolvimento local agroecológico é outro debate, que necessita ser empreendido.

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