sábado, 24 de outubro de 2020

CRÍTICA AO MODELO ATUAL DE DESENVOLVIMENTO AGRÍCOLA E À TRANSIÇÃO AGROECOLÓGICA NO SEMI-ÁRIDO - TEXTO ENCONTRO NACIONAL DE AGROECOLOGIA - ENA 2002

 CRÍTICA AO MODELO ATUAL DE DESENVOLVIMENTO AGRÍCOLA E À

TRANSIÇÃO AGROECOLÓGICA NO SEMI-ÁRIDO

Texto elaborado para o Encontro Nacional de Agroecologia - ENA 2002. 

Eduardo Martins Barbosa

O semi-árido brasileiro é marcado pela singularidade de ser a única região semi-árida tropical do planeta, pela diversidade ecológica decorrente de seus diversos ambientes naturais, pela complexidade social originária do processo de colonização e pelo desafio do desenvolvimento, devido à persistente situação de miséria e pobreza da maioria da população, especialmente aquela que vive nos espaços rurais.

É uma das maiores regiões semi-áridas do planeta em extensão geográfica e em população. São 858.000km2, mas o polígono das secas é estimado em 1.083.790km2. Segundo o Ministério do Desenvolvimento Agrário – MDA, em 2001, o semi-árido abrigava pouco mais de 21 milhões de pessoas em 1.031 municípios situados no Norte de Minas Gerais, nos sertões da Bahia, Paraíba, de Sergipe, Alagoas, Pernambuco, do Rio Grande do Norte, Ceará e Piauí. Outras fontes incluem o Norte do Espírito Santo e uma parte do Sudeste do Maranhão na região semi-árida. As áreas dos Tabuleiros Costeiros do Ceará, Rio Grande do Norte e parte da Paraíba, embora não sejam consideradas pertencentes aos domínios do semi-árido, sofrem os efeitos do regime de chuvas da região e se enquadram no polígono das secas.

Os clássicos estudos de Guimarães Duque registram essa diversidade, com a identificação e caracterização das seguintes regiões naturais: Seridó, Sertão, Caatinga, Cariris Velhos, Curimataú, Carrasco, Agreste e Serras. A Embrapa, em seu Zoneamento Agroecológico do Nordeste, publicado em 1993, caracteriza o total de 172 unidades geoambientais em 20 unidades de paisagem, bem como oito tipos e 16 subtipos de sistemas de produção. Desse conjunto, uma boa parte está presente na região semi-árida. Portanto, longe de se caracterizar como um espaço homogêneo, o semi-árido pode ser apresentado como um “grande mosaico”.

Em termos climáticos, destacam-se as temperaturas médias elevadas e precipitações médias anuais inferiores a 800mm, extremamente concentradas, gerando os períodos de chuvas e estiagens. Cerca de 50% dos terrenos são de origem cristalina, e os outros 50% são terrenos sedimentares, sendo os primeiros de baixa capacidade, e os segundos de alta capacidade de acumulação de águas subterrâneas. A vegetação predominante é a caatinga, mas são observadas outras formações florestais nos microclimas existentes na região.

A ocupação do semi-árido nordestino pelos colonizadores vinculou-se historicamente à atividade pecuária, base econômica da região por alguns séculos. O sistema de grandes fazendas, originárias das sesmarias, é a forma típica de ocupação do território. Formada pelo “coronel” e seus familiares mais próximos, e contando com as famílias trabalhadoras vivendo agregadas ao núcleo familiar proprietário das terras, a fazenda era uma unidade econômica e social marcada por complexas relações de dominação e compadrio. A criação de gado e a indústria da charqueada constituíram o apogeu desse sistema. Além disso, a criação tanto de gado como de caprinos e ovinos estava voltada para a alimentação da população local e para o aproveitamento do couro nas necessidades da fazenda. As famílias trabalhadoras desenvolviam uma pequena agricultura diversificada composta de cultivos alimentares e de uso doméstico e a criação de porcos e aves, também voltada para o consumo da população local. Essas atividades eram praticadas no interior das fazendas de gado ou nas posses situadas nas terras devolutas. A hegemonia da pecuária sobre a agricultura expressa-se na lei “cerca quem planta”, geradora do sistema de roçados cercados para o cultivo agrícola e da criação solta, ferrada a fogo, com a marca identificadora do proprietário.

Centrada inicialmente na pecuária, a expansão da agricultura no semi-árido deveu-se ao cultivo em larga escala do algodão-mocó, que se integrou à criação formando o binômio gado/algodão. Os sistemas de produção incluíam ainda culturas alimentares e outras culturas de expressão regional como a mamona, o sisal e o extrativismo da carnaúba, da oiticica e do caju. A florescente agroindústria algodoeira e dos demais produtos cultivados ou extrativistas, mesmo passando por momentos críticos, foi a base econômica do semi-árido desde a década de 1930, até meados da década de 1980, quando o sistema praticamente entrou em colapso, devido a um conjunto de problemas sociais, ambientais, tecnológicos e comerciais, que não foram solucionados pelo setor produtivo e pelas instituições públicas atuantes no semi-árido.

A dinâmica de modernização tecnológica da agricultura nacional empreendida pelos governos militares foi bastante desigual nas grandes regiões brasileiras. No semi-árido expressou-se de maneira localizada, por meio dos projetos de irrigação do Departamento Nacional de Obras Contra as Secas – DNOCS, na forma de enclaves, não se verificando disseminação generalizada do pacote tecnológico químico-mecânico nem a constituição dos complexos agroindustriais, na proporção verificada em outras regiões. Isso, entretanto, não significa a inexistência de profundas transformações no espaço rural do semi-árido. Essas se deram muito mais pelas transformações nas relações sociais de produção da região, em especial na relação de parceria entre os grandes proprietários fundiários e as famílias de agricultores, que moravam e trabalhavam nas grandes fazendas. A quebra dessa relação de parceria e, principalmente, da condição de moradia foi uma medida preventiva do segmento patronal, contra a reivindicação de direitos trabalhistas e a luta pela reforma agrária, fundamentadas no “bem de raiz”, proporcionado pelo cultivo do algodão-mocó pelos parceiros-moradores. Essas medidas geraram uma situação de conflito social generalizado.

O Estado militarizado, aliado às oligarquias rurais locais, procurou controlar essa situação e modernizar a economia do semi-árido, combinando diversas medidas, destacando-se a repressão à crescente organização dos trabalhadores rurais, a política assistencialista, por intermédio do Fundo de Assistência ao Trabalhador Rural – Funrural, e o generoso financiamento da “pecuarização” e/ou “reflorestamento”, mediante incentivos fiscais, crédito subsidiado e trabalho das frentes produtivas nos períodos de seca. Um dos resultados dessa política foi o “desenraizamento” das famílias rurais, gerando intenso fluxo migratório para outras regiões do país.

Além dessas dinâmicas demográficas e territoriais e do enriquecimento ilícito de muitos, esse processo resultou na montagem de significativa infra-estrutura produtiva nas grandes propriedades do sertão, representada pelos açudes, estábulos, silos e cercamento das terras. Por outro lado, a formação de pastagem nativa e exótica provocou o desmatamento e o uso de herbicida em proporções mais elevadas. Também do ponto de vista econômico essa opção configurou-se em fracasso, comprometendo ainda mais as dinâmicas econômicas locais já ressentidas da progressiva desestruturação da agroindústria algodoeira e dos produtos regionais e extrativistas.

Outro resultado observado foi a desarticulação entre as dinâmicas dos demais espaços agrários subsidiários e a hegemônica dinâmica pecuária/algodoeira do sertão. Nas serras e agrestes, constituíram-se pólos hortifrutigrangeiros orientados para o abastecimento das grandes cidades e pólos alcooleiros. Na região subcosteira foram formados pólos de produção de caju, coco e cana para a produção de álcool, além daqueles dedicados à avicultura e à pecuária leiteira, possibilitando o direcionamento da economia dessas regiões para as grandes cidades e para o mercado externo.

No bojo do processo de redemocratização da década de 1980 e da fase neoliberal da década de 1990, aprofundam-se no semi-árido a diferenciação e a desarticulação interna entre os enclaves de agricultura irrigada e os amplos territórios de predomínio da agricultura de sequeiro. Ampliando-se o foco sobre o cenário, podem-se observar a progressiva decadência produtiva e econômica dos perímetros irrigados, resultado do esgotamento do padrão tecnológico, organizativo e gerencial adotado pelo DNOCS, e o dinamismo econômico dos novos pólos de desenvolvimento da agricultura irrigada, centrados na fruticultura de exportação, mediados por poderosos grupos empresariais, com integração dos agricultores de menor porte e com forte apoio estatal. Esses pólos, entretanto, reproduzem os processos de degradação ambiental, de exploração da força de trabalho integrada e de exclusão socioeconômica de parcelas significativas da população local, observados nas áreas mais antigas.

Por outro lado, nos territórios de predomínio da agricultura de sequeiro, três dinâmicas podem ser identificadas: a dos sertões, a dos agrestes e serras e a da região subcosteira. Nesta última observa-se a crescente queda de produtividade da cajucultura e dos coqueirais, com incidência crescente de pragas e doenças. Nos agrestes e serras, a degradação dos solos e a contaminação por agrotóxicos são os problemas mais relevantes. É no sertão, entretanto, que residem os maiores desafios, pois a desestruturação socioprodutiva descrita ainda não foi superada, em decorrência dos fracos resultados em termos da revitalização da cultura do algodão e dos produtos regionais e extrativistas, bem como do insuficiente desenvolvimento e difusão de alternativas de renda. Essa difícil situação geral, entretanto, é pontuada por numerosas situações localizadas que se diferenciam pela emergência de processos de reestruturação produtiva, por meio da incorporação da agricultura irrigada de pequena escala aos sistemas existentes, bem como pela própria modernização de atividades tradicionais, em especial da ovinocaprinocultura e da bovinocultura leiteira.

Esse complexo quadro de ocupação do território do semi-árido também gerou grande diferenciação nos empreendimentos agrícolas da região. Convivem nos mesmos espaços empresas agrícolas modernizadas, empresas tradicionais pouco tecnificadas, latifúndios improdutivos, agricultores familiares modernizados e tradicionais. Estes dois últimos comportam formas variadas de acesso à terra, que definem diversas categorias sociais. No geral, a pressão da agricultura familiar sobre a terra é cada vez maior e combina-se com o empobrecimento generalizado, provocando fluxos migratórios, principalmente nos anos de ocorrência de seca.

Desde a ocupação inicial até as dinâmicas mais recentes, vêm-se acumulando impactos socioambientais negativos no semi-árido. Os mais amplos são, sem dúvida, a degradação da vegetação e dos solos, observando-se crescente processo de desertificação em diversas regiões. Segundo o Instituto Desert, esse processo vem comprometendo de forma “muito grave” uma área de 98.595km2 e de forma “grave” 81.870km2, totalizando 181.000km2. Nas áreas de agricultura irrigada, os problemas de contaminação por agrotóxicos e salinização das terras são os mais relevantes. As grandes barragens geraram impactos muitos fortes sobre o ambiente e as populações locais, que pouco se beneficiaram dos altos investimentos realizados pelo Estado. De modo geral, prevaleceu a chamada “solução hidráulica” e não se desenvolveu a cultura de convivência com o semi-árido. As linhas mestras do modelo de desenvolvimento concentrador e excludente, historicamente estabelecidas, continuam vigorando, sendo determinantes na configuração do quadro de miséria e pobreza vigente no semi-árido brasileiro.

A TRANSIÇÃO PARA A AGROECOLOGIA

Nesse contexto geral, a agroecologia tem servido de base para a construção de uma cultura de convivência no semi-árido, possibilitando o renascimento e o rejuvenescimento de vertentes de conhecimento e de proposições tecnológicas, que tinham sido ceifadas pela concepção químico-mecânica, estabelecidas em universidades, centros de pesquisa, instituições de crédito e empresas de assistência técnica e extensão rural.

As dinâmicas de promoção da agroecologia originam-se das iniciativas de estudantes e profissionais da área agronômica e ambiental que recuperam os postulados de Guimarães Duque, Vasconcelos Sobrinho e outros estudiosos e entusiastas do semi-árido e da região nordestina em geral. A agroecologia permite revisitar e atualizar essa linha de pensamento, desenvolvendo-a na perspectiva da construção de uma cultura de convivência com o semi-árido, fundamentada na interação entre os conhecimentos e as técnicas geradas pela vivência da população local com seu meio e aqueles originários dos processos de pesquisa científica da atualidade.

A partir de meados da década de 1980 essas iniciativas das ONGs no campo da tecnologia alternativa começam a articular-se com as organizações dos trabalhadores rurais e com as estruturas de base das igrejas, gerando um movimento crescente, voltado para a construção de um novo modelo de desenvolvimento agrícola para o semi-árido. Esse trabalho desenvolve-se por meio da estruturação de centros e de redes de tecnologia alternativa, construindo-se pontos de contato com as universidades e outras instituições de pesquisa e extensão rural. A estratégia seguinte orienta-se para a ação local, em municípios selecionados, tendo como base a metodologia do diagnóstico rápido e participativo dos agroecossistemas e de elaboração de planos de desenvolvimento agroecológicos para comunidades rurais, em algumas situações com abrangência municipal. Esses trabalhos envolvem um significativo conjunto de temas técnicos, tendo alguns deles passado a ser o elemento de constituição de redes temáticas, com destaque para as sementes, a apicultura e a água. Essas ações evoluíram e se disseminaram para muitas áreas do semi-árido, constituindo-se em estratégias de ação que podem ser assim classificadas:

A primeira delas pode ser caracterizada como Ação de Pesquisa, Desenvolvimento e Difusão Ampla de uma Tecnologia Específica. Iniciou-se com o desenvolvimento de uma tecnologia específica, de amplo alcance, de fácil reprodução e adaptação, que responde a uma necessidade fundamental da população. A referência dessa estratégia é o trabalho em torno da cisterna de placas, que começou com a sistematização da experiência de um pedreiro, passou pela adaptação e melhoramento do método de construção e pelo desenvolvimento da metodologia de treinamento e de financiamento pelas ONGs, sendo incluído em programas de ação de prefeituras e estados, e chegando até a formulação atual do Programa de Formação e Mobilização Social para a Convivência com o Semi-Árido – Um Milhão de Cisternas – P1MC. Essa estratégia ampliada só foi possível devido à simultânea estruturação da Articulação do Semi-Árido – ASA, que atualmente envolve 613 diferentes organizações da sociedade civil.

A segunda estratégia que pode ser identificada é a Ação de Pesquisa, Desenvolvimento e Difusão Local de uma Base Tecnológica Agroecológica. Diversas entidades situadas no semi-árido adotam essa estratégia, de forma mais ou menos elaborada. Normalmente há significativo investimento no desenvolvimento de tecnologias agroecológicas, com formação de grupos de interesse e difusão em escala local. Trabalha-se com a complexidade dos sistemas de produção local, vinculando-se às organizações dos agricultores familiares.

Trabalhando ou não com a agroecologia, a Ação de Resgate, Valorização, Fortalecimento e Inclusão de Segmentos e Grupos Sociais é outra estratégia presente nas intervenções no semi-árido, principalmente em relação a mulheres e jovens. Ações de natureza educacional, artística, cultural, de geração de trabalho e renda, de apoio jurídico, etc. caracterizam as organizações desse campo. Também não direcionada especificamente para a transição agroecológica, verifica-se estratégia focada na Ação de Fortalecimento da Cidadania e Democratização das Políticas Públicas, que tem na capacitação das lideranças populares para a gestão social do desenvolvimento local um de seus principais focos de trabalho. Quando essa estratégia aponta para a discussão da Agenda 21, abre-se um grande campo para o debate do modelo agrícola e da necessidade de uma agricultura sustentável.

Nesse mesmo sentido, apresenta-se a estratégia de Desenvolvimento Local, que tanto pode ser uma iniciativa das organizações populares, das ONGs ou de instituições públicas estatais. São exemplos desse trabalho o Programa de Desenvolvimento Local Sustentável – PDLS do movimento sindical, as ONGs participantes da Rede Desenvolvimento Local Integrado e Sustentável – Dlis, os programas públicos desenvolvidos por instituições como o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social – BNDES, Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento – PNUD, Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas – Sebrae, Banco do Nordeste, Conselho da Comunidade Solidária, etc. Aqui, a transição agroecológica, normalmente via agricultura orgânica, também começa a ganhar algum espaço, principalmente pela discussão da Agenda 21.

Além dessas estratégias mais gerais, têm-se dinâmicas específicas que estão contribuindo significativamente para o avanço da agroecologia. A constituição de associações de consumidores e produtores orgânicos, visando ao planejamento da produção e à comercialização direta tem sido um caminho bastante promissor. Associações de produtores orgânicos voltadas para a venda em feiras agroecológicas ou mesmo para redes de supermercados têm mostrado a viabilidade técnica e econômica da proposta, reforçando a transição agroecológica no semi-árido. Algumas poucas grandes empresas rurais também começam a investir na produção orgânica, a exemplo do caju, mostrando que a agricultura familiar não é a única interessada nesse assunto.

Em síntese, pode-se concluir que, de forma semelhante ao que ocorre em outras regiões do Brasil, no semi-árido também estão se constituindo diversas dinâmicas de promoção da agroecologia, com vários atores envolvidos. De modo geral, elas ainda são incipientes, restritas e pouco articuladas, sendo necessário um grande esforço de integração, expansão e consolidação, para que se possa avançar na transição agroecológica no semi-árido brasileiro.

As dinâmicas de promoção da agroecologia no semi-árido estão referenciadas no conjunto das experiências que podem ser analisadas a partir de grandes temas e questões, identificando-se em cada um os acúmulos e os pontos de estrangulamento, de modo a se ter um painel do nível de construção da proposta agroecológica no semi-árido. Esse esforço de análise é apresentado a seguir.

O acesso à terra continua sendo ponto de estrangulamento para milhares de famílias de agricultores do semi-árido. De modo geral, duas situações bem diferenciadas podem ser observadas. Nas áreas sertanejas e subcosteiras, a presença das grandes propriedades, passíveis de desapropriação, aponta para a necessidade de ampliação do número de assentamentos federais, capaz de absorver parcela significativa dos “sem terra” dessas regiões. Por outro lado, nas unidades geoambientais dos agrestes e serras, a resolução da questão fundiária passa por outros mecanismos, tais como a reorganização e o crédito fundiários. Embora muito aquém das necessidades, a política de assentamento do governo federal e de alguns governos estaduais vem criando uma realidade diferenciada para um conjunto de famílias rurais, e, em alguns municípios e microrregiões do semi-árido, as transformações na estrutura fundiária são relevantes. Entretanto, um ponto extremamente preocupante é a recorrente dificuldade de os assentamentos situados no semi-árido viabilizarem-se produtiva e economicamente, observando-se níveis de pobreza semelhantes aos da situação rural das áreas em que estão inseridos. Vale ressaltar que um número significativo desses assentamentos dispõe de infra-estrutura básica, teve acesso aos créditos da reforma agrária para a estruturação das atividades produtivas, e alguns também foram beneficiados com programas de alfabetização e de assistência técnica, embora com as descontinuidades típicas das ações governamentais nesse campo.

No semi-árido o recurso natural crítico é a água. Seu uso indevido na agricultura irrigada, a precariedade do gerenciamento e a poluição das fontes de armazenamento são problemas crescentes ainda pouco trabalhados. A degradação dos recursos vegetais e do solo é um forte impacto ambiental negativo dos sistemas de produção “tradicionais” e “modernizados” existentes no semi-árido nordestino. Em algumas áreas essa degradação está evoluindo para a desertificação, com risco do comprometimento definitivo da sustentabilidade da agricultura. A gravidade da situação e as respostas positivas que os sistemas agroecológicos de produção vêm apresentando criam ambiente favorável para a difusão ampliada das soluções.

O desafio de conhecer a singularidade e a diversidade do trópico semi-árido requer significativo investimento em pesquisa, o que está muito longe do que se tem atualmente. A condição de região com índices de desenvolvimento muito abaixo da média nacional e o pouco investimento na produção de conhecimento sobre a realidade regional são fatores que se alimentam mutuamente, reforçando o círculo vicioso de pouca pesquisa, baixo desenvolvimento e vice-versa. Essa situação geral da pesquisa na região agrava-se quando se analisa a base científica para a transição agroecológica no semi-árido. Entretanto, nesse campo específico, os esforços das ONGs, articulados com as organizações dos agricultores familiares e com a colaboração de alguns poucos pesquisadores das instituições públicas, possibilitaram a geração de um conjunto mínimo de técnicas, capaz de responder aos problemas básicos dos sistemas de produção da maioria dos agricultores familiares do semi-árido. Nesse sentido destacam-se as técnicas de recuperação e conservação dos solos; a captação, o armazenamento e a utilização da água na propriedade, o manejo da vegetação, em especial da caatinga, mediante os sistemas agropastoris, silvopastoris ou agrossilvopastoris, a criação de bovinos, ovinos, caprinos, suínos e aves caipiras, a agroindustrialização familiar ou comunitária de diversos produtos e muitas outras tecnologias apropriadas às condições da agricultura familiar no semi-árido. O principal ponto de estrangulamento está na insuficiência e na ineficiência do sistema público estatal de assistência técnica e extensão rural, bem como em sua fragilidade e insuficiente articulação, com as instituições de pesquisa e com o setor público não estatal formado por ONGs, cooperativas de trabalho e empresas prestadoras de serviços. Este último setor, por sua vez, articula-se em redes diversas, mas não conseguiu estabelecer-se como um sistema organicamente estruturado, e seu funcionamento depende, por um lado, dos recursos da cooperação internacional e, por outro, dos programas governamentais, havendo raríssimos mecanismos de auto-sustentação em prática. Mesmo sujeito a esses condicionantes, o setor tem desempenhado um importante papel na geração do conhecimento agroecológico no semi-árido e tem sido o maior responsável por sua difusão junto aos agricultores familiares.

A dimensão econômica tem-se configurado num dos principais pontos críticos do processo de transição agroecológica no semi-árido. Submetidos à condição de miséria, pobreza ou descapitalização, cujas causas já foram expostas, os agricultores familiares e as organizações atuantes no semi-árido enfrentam o grande desafio de conciliar os investimentos necessários à recuperação dos recursos naturais e o manejo agroecológico de seus sistemas de produção, com a geração de produtos para o autoconsumo e de uma renda mínima, capaz de viabilizar o consumo dos demais itens que compõem a cesta familiar de produtos e serviços – o que vem sendo feito de forma bastante coerente e conseqüente por agricultores familiares, suas organizações representativas e pelas entidades de apoio. O ponto de partida é o trabalho em torno do tema segurança alimentar, que se dá por meio das casas de sementes, da diversificação dos roçados e quintais, das cisternas de placa, das pequenas barragens subterrâneas, dos cacimbões, dos barreiros-trincheira, das hortas, dos pomares, da apicultura e da criação de pequenos animais.

No semi-árido a prioridade econômica da maioria dos agricultores familiares é a regularidade da produção de alimentos nas condições de alta irregularidade do regime de chuvas. Isso pode ser obtido com pequenos investimentos financeiros orientados fundamentalmente para a capacitação e o acompanhamento sistemático de todos os que formam o núcleo familiar e para as pequenas obras de infra-estrutura produtiva e reprodutiva, voltadas para a melhoria da qualidade de vida da família. Essa estratégia básica, incluindo as melhores formas de financiamento, está técnica e metodologicamente muito bem elaborada, testada e implementada em diversas situações agrossocioambientais do semi-árido e pode ser considerada o maior patrimônio do conjunto das organizações envolvidas nesses trabalhos.

Essa forte perspectiva de autoconsumo presente em parcelas significativas da agricultura familiar não está dissociada de uma perspectiva mercantil, que vai desde a venda parcial da própria força de trabalho, realizada pelos segmentos mais empobrecidos, até a inserção no mercado internacional, a exemplo de alguns grupos de produtores de frutas frescas e castanha-de-caju. Considerando as diversas formas de inserção no mercado, viabilizadoras da renda monetária bruta dos agricultores familiares, pode-se observar que o conjunto diversificado de produtos trabalhados nos processos de transição agroecológica traz mais oportunidades de comercialização, e certos produtos passam a ser uma “atividade de renda” em função dos volumes de produção alcançados. Analisando um pouco mais detalhadamente esse aspecto econômico, podem-se observar dinâmicas distintas. Uma primeira diz respeito à revitalização de atividades tradicionais de mercado, como o algodão, o sisal, a castanha-de-caju, a cera de carnaúba, o artesanato e o próprio café. Outras podem ser consideradas atividades tradicionais em processo de mercantilização ampliada, como é o caso do mel, dos ovinos e caprinos e de frutas regionais, cajá, cajarana, umbu, goiaba, graviola e ata, por exemplo. Uma terceira dinâmica está mais relacionada a produtos de introdução mais recente, como as hortaliças e algumas frutas, entre elas o melão, o abacaxi, a acerola e a uva. Por fim, existem produtos em fase de introdução na região, a exemplo do nim e do carmim de cochonilha, que formam mercados especiais.

Em todas essas atividades existem agricultores e entidades de apoio trabalhando em processos de transição para a agroecologia, a maioria com bons resultados produtivos e até com certificação orgânica. Entretanto alguns produtos, a exemplo do algodão e do mel, apresentam significativos estrangulamentos comerciais, resultado de dificuldades de venda em pequena escala ou do escoamento da produção mais elevada e de preços não compensadores. Em outras situações o mercado é franco comprador dos produtos orgânicos, mas a transição agroecológica está restrita a um pequeno número de agricultores, com taxa de expansão muito lenta; é o caso da castanha-de-caju. Observam-se também casos de integração de produtores de hortaliças orgânicas a redes de supermercados. Por outro lado, agricultores produzindo “novos produtos de mercado”, como a semente de nim e carmim de cochonilha, têm aproveitado esse diferencial tecnológico para faturar renda expressiva com pouco trabalho. A venda de cestas padronizadas e a venda direta para consumidores cadastrados ou para a vizinhança, bem como as feiras de produtos da agricultura familiar e/ou de produtos agroecológicos, são estratégias comerciais em processo de expansão nas grandes e pequenas cidades do semi-árido, mostrando a importância dos mercados locais, principalmente para os produtos alimentícios e medicinais. Em muitos casos, o diferencial de renda é decorrente do máximo aproveitamento de todos os produtos de origem vegetal e animal, por meio da agroindustrialização descentralizada. Em algumas situações, estruturas mais centralizadas, combinadas ou não com estruturas descentralizadas, têm propiciado o melhor aproveitamento da produção e a comercialização mais vantajosa, especialmente quando se trata de exportação. Em síntese, podemos concluir que, do ponto de vista econômico, sob a lógica de combinação de autoconsumo e mercantilização, característica da maioria dos tipos de agricultura familiar do semi-árido, a transição agroecológica tem conseguido demonstrar sua viabilidade, principalmente no campo da segurança alimentar, registrando também avanços nos aspectos comerciais, proporcionando incrementos na renda monetária das unidades produtivas. Observam-se, entretanto, muitas deficiências e insuficiências nos aspectos de organização da produção e da comercialização. Isso sugere que os investimentos das organizações dos agricultores e das entidades de apoio nesse campo são fundamentais em termos da viabilidade econômica da transição agroecológica em escala mais ampla no semi-árido.

No início da discussão sobre a transição agroecológica no semi-árido, a disputa no campo ideológico era marcada pela tentativa de desqualificação dos agricultores e profissionais envolvidos no trabalho, mediante sua classificação como utópicos, românticos, atrasados ou malucos. A crescente crise dos padrões tradicional e convencional, e os resultados positivos alcançados pela agroecologia no semi-árido, no contexto da ampliação da consciência ambiental do conjunto da população, vêm propiciando inversão de valores expressa na valorização e na demanda crescente de produtos naturais. Essa mudança de tendência ocorre de forma mais generalizada e consistente nas populações urbanas de maior renda e escolaridade e em meio às pessoas participantes de organizações sociais de diversos tipos. Entretanto, esse reconhecimento da importância do meio ambiente e dos produtos naturais ainda não está diretamente relacionado com o papel potencial da agricultura familiar do semi-árido na sociedade. Devido à condição de miséria e pobreza da maioria da população rural do semi-árido, ainda predomina na população urbana a visão estigmatizada desse segmento social. Também é comum a autovisão negativa por parte dos agricultores familiares, principalmente em meio à população mais jovem. Desse modo, os esforços recentes de valorização da agricultura familiar empreendidos pelas organizações de representação e entidades de apoio são fundamentais. Os resultados iniciais, ainda numericamente pouco expressivos, são de grande importância para a construção da cidadania no campo.

Nesse contexto, o trabalho mais relevante tem sido empreendido pelas mulheres trabalhadoras rurais. A construção de suas identidades a partir da reflexão das relações de gênero na unidade familiar, em suas organizações e na sociedade tem avançado de maneira ampla e consistente, reconhecendo-se, entretanto, o longo caminho a se percorrer. A ação mais recente, mas ainda menos estruturada, está sendo desenvolvida junto à juventude rural. Nesse caso tem-se o duplo desafio de sensibilizar seus membros para a valorização de sua condição de jovem agricultor(a) e, ao mesmo tempo, criar as condições de trabalho e renda capazes de garantir sua permanência no campo. Observa-se também um incipiente trabalho relacionado às questões étnicas no conjunto da agricultura familiar do semi-árido. A auto-identificação de comunidades indígenas e negras, o resgate de suas identidades, o reconhecimento de seus direitos pela sociedade e pelo Estado são passos importantes na valorização da diversidade da população que vive e trabalha no semi-árido brasileiro.

A análise dos avanços e dos pontos de estrangulamento da dimensão político-organizativa na construção da transição agroecológica passa inicialmente pela identificação dos principais atores interessadas em um novo modelo de desenvolvimento rural, para o Brasil e para o semi-árido em particular. Nesse sentido, considera-se a seguinte base organizativa: movimento sindical dos trabalhadores e trabalhadoras rurais, movimento dos sem terra, movimento associativo e cooperativo, ONGs, instituições vinculadas às igrejas e partidos políticos progressistas. Parte-se também da idéia de que a transformação da consciência social agroecológica em força política depende do nível de organização do “bloco agroecológico” no interior desse conjunto. De início vale observar que possivelmente nessa dimensão residem as maiores fragilidades para a transição agroecológica no semi-árido. Esta síntese está relacionada com a análise de cada segmento, conforme se segue:

Do ponto de vista quantitativo e territorial, o Movimento Sindical dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais – MSTTR é sem dúvida a estrutura organizativa mais forte no semi-árido. Entretanto, sua estratégia central, a construção do Projeto Alternativo de Desenvolvimento Rural Sustentável – PADRS, de âmbito nacional, implementada pelas ações de massa, como o Grito da Terra Brasil e a Marcha das Margaridas e por ações mais permanentes por meio do PDLS, não tem a agroecologia como referência teórica para sua construção. Diversos sindicatos e algumas regionais, pólos sindicais e federações, contudo, já incorporaram, em graus variados, a agroecologia e a convivência com o semi-árido como elementos centrais na construção do PADRS. Ainda no campo sindical, vale ressaltar que a entrada da Central Única dos Trabalhadores – CUT, por intermédio da Agência de Desenvolvimento Solidário – ADS, no debate e na construção de um novo modelo de desenvolvimento, mesmo sem vinculação direta com a agroecologia, é um elemento favorável para o trabalho desse tema no semi-árido. 

Outro importante ator nacional atuante no semi-árido é o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra – MST. Até pouco tempo atrás, essa organização não poderia ser relacionada no campo da agroecologia, mas parece estar havendo um redirecionamento em função de questões mais gerais. No semi-árido, a tentativa inicial de modernização tecnológica químico-mecânica dos assentamentos mediante projetos de financiamento, aliada à organização coletivista da produção, mostrou-se bastante inadequada. Não foi possível obter informações confiáveis sobre até que ponto a agroecologia e a convivência no semi-árido têm sido trabalhadas pelo MST para reverter essas dificuldades. De modo geral, poucos assentamentos localizados no semi-árido, vinculados ao MST e/ou ao MSTTR, têm conseguido avançar nas dimensões produtiva, ambiental e comercial, o que gerou a formulação de uma ação específica do governo federal, o Projeto Dom Helder Câmara, que aponta a agroecologia como base técnica para o semi-árido.

A transição agroecológica nessa região vai exigir uma organização de base muito ampla, representada pelas associações comunitárias e de produtores. Também não foi possível trabalhar com informações seguras nesse campo, mas é corrente a análise apontando a vinculação e a dependência da maioria dessas organizações aos programas governamentais, desde sua criação. Por outro lado, são muitas as organizações desse tipo que dão suporte ao trabalho com agroecologia junto às famílias dos agricultores familiares, e sem dúvida elas têm desempenhado papel fundamental na expansão da agroecologia no semi-árido. Um dos pontos de estrangulamento desse trabalho é a relativa dispersão e desarticulação entre essas formas organizativas e o MSTTR. Além do movimento associativista, deve-se também considerar o cooperativista, que, no geral, tem histórico bastante negativista, ainda que exista uma dinâmica de renovação, com criação de novas e pequenas cooperativas de agricultores familiares, incluindo algumas de crédito. A interiorização da agroecologia nessas estruturas organizativas pode ser observada, sendo necessário avançar nesse campo, até para viabilizar o crédito para a transição agroecológica. Analisando-se o papel das ONGs e da estrutura das igrejas em termos político-organizativos, pode-se observar a importância da articulação entre esses dois atores na constituição da ASA e na implementação do P1MC, o que pode resultar numa forte organização mais permanente, abrangendo todo o semi-árido. Em relação aos partidos políticos progressistas, tem-se ainda um distanciamento em relação ao que está sendo construído, embora exista certa valorização dessa experiência. Em alguns temas, como a transposição de bacias, há sinais de posicionamentos diferenciados entre os partidos e as demais organizações atuantes na questão dos recursos hídricos.

A transformação das diversas experiências agroecológicas em políticas públicas para a agricultura familiar tem sido uma batalha constante de todas as organizações da sociedade civil atuantes no semi-árido. Do ponto de vista mais geral, as ações relacionadas com captação, armazenamento e uso da água, em especial a cisterna de placas, têm sensibilizado os gestores públicos em todos os níveis administrativos, resultando em parcerias efetivas para a elaboração e implementação de programas com recursos públicos.

As propostas de transformação dos sistemas produtivos têm apresentado mais dificuldades, mas algumas delas, como a apicultura, as casas de sementes, o manejo da caatinga e a criação de ovinos e caprinos e de aves, o algodão orgânico, o processamento da produção, etc., também têm sido incorporadas por um pequeno número de prefeituras e programas de financiamento, a exemplo do Programa de Financiamento à Conservação e Controle do Meio Ambiente do Banco do Nordeste – FNE Verde. Propostas mais ousadas, como a agroflorestação, ainda estão restritas às dinâmicas da própria sociedade civil. Os serviços de assistência técnica para a transição agroecológica e de apoio à comercialização também têm sido objeto de poucas iniciativas em termos de políticas públicas. Se no geral os avanços foram poucos, alguns bons resultados nas ações específicas vêm sendo alcançados, o que permite construir um banco de idéias e projetos para a expansão das políticas públicas baseadas na agroecologia.

Apontar tendências, a partir de um conjunto de experiências pontuais parcialmente conectadas, é certamente uma temeridade, mas a importância e a pertinência do debate justificam os risco dessa empreitada com sabor de futurologia. O desafio consiste em fazer uma prospeção sobre para qual padrão de organização técnica, fundiária e socioeconômica tende esse conjunto de experiências em desenvolvimento no semi-árido.

Considerando as imensas desigualdades existentes na atualidade, de modo geral, a tendência para o semi-árido é a de coexistência, por um largo tempo, de quatro padrões tecnológicos: o tradicional, o químico-mecânico, o biotecnológico/transgênico e o agroecológico.

A falta de perspectiva de futuro para quem adota o padrão tradicional e as dificuldades de estabelecimento do padrão químico-mecânico na complexa realidade socioambiental do semi-árido sinalizam que esses dois padrões tendem ao declínio progressivo, estando a velocidade e a orientação dessas mudanças relacionadas com a capacidade de ação do “bloco agroecológico”. Considerando os processos desencadeados por esse bloco, expressos nos resultados positivos das referências agroecológicas já estabelecidas e no crescente envolvimento das organizações sindicais, associativas e cooperativas e das entidades de apoio com a difusão dessas experiências, pode-se conjecturar que o padrão agroecológico, articulado a uma mecanização mais criteriosa, será a base tecnológica de um significativo contingente da agricultura familiar e possivelmente de parcela da própria agricultura patronal.

Quanto ao padrão fundiário que está sendo construído, considerando os avanços e percalços da reforma agrária no semi-árido até o momento, podem-se antever as seguintes tendências: diminuição do número de unidades familiares entre um e quatro módulos fiscais de cada região e expansão do número de propriedades abaixo de um módulo fiscal, pois a subdivisão por herança é um processo de difícil estancamento nas próximas décadas. Mesclados a essas pequenas unidades familiares, os assentamentos de maior porte, originários da desapropriação das grandes fazendas pelo governo federal, devem ter seu número aumentado, principalmente nas áreas sertanejas mais secas. Além disso, pode-se antever um significativo incremento de assentamentos de menor porte, viabilizados por programas estaduais de reforma agrária e de crédito fundiário. Eles permitirão o acesso à terra aos atuais sem terra, moradores em regiões que dispõem de poucas áreas passíveis de desapropriação. Vale lembrar que muitos deles são integrantes das várias associações comunitárias existentes, fruto do crescente processo de organização social da população rural, com todas as dificuldades e distorções observadas. Registre-se também que parte da população urbana dos numerosos pequenos municípios espalhados pelo semi-árido, ainda vinculada às atividades agrícolas, será beneficiária desse processo e também deverá estar inserida na estrutura fundiária de forma mais segura, superando a precariedade atual em termos de posse e uso da terra. Em síntese, a tendência geral de democratização do acesso à terra deve consolidar-se, podendo o ritmo e a velocidade do processo acelerarem-se, em função do perfil dos próximos governantes.

Analisando os aspectos socioeconômicos que estão sendo gestados pelas experiências do bloco da agricultura sustentável, podem-se perceber dois caminhos. Um deles está apostando na difusão desse padrão tecnológico para todas as formas de organização socioecônomicas, sem distinção entre agricultura patronal e agricultura familiar. O outro caminho, referenciado no desenvolvimento rural solidário e sustentável, aponta para a articulação entre agricultura familiar, agroecologia e socioeconomia solidária como base para a convivência no semi-árido. Seguindo os passos do poeta, é nesse segundo caminho, construído no próprio caminhar, que residem as esperanças de construção de um novo padrão de organização social e técnica da agricultura do semi-árido. Caminhemos.

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